Jornal de Angola

Mambo de quarentena III

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A primeira coisa que me ocorre ao levantarme, é saber ao certo, há quantos dias estou confinado. Como ando em termos de distanciam­ento social. Já vai uma boa temporada! A rotina é extenuante, mas não pode ser quebrada. Coração ao alto, recomenda o doutor Sacy, velho amigo e conselheir­o. Ouço também a Evelise. Apaparica-me o coração, dá ânimo e sob sua influência, deleito-me, em hora própria, com bons sons, da televisão, áudio ou vídeo do telefone, recebidos de vários amigos. É um excelente lenitivo para a solidão. Como os dias são longos, para além de ler e escrever, há sempre espaço para o cinema. Descobre-se sempre um bom filme, quantas vezes escondido sob título pouco ou nada revelador da sua real qualidade.

Por muito que me esforce, não deixo de me envolver nos assuntos correntes, há sempre espaço para Angola. Na quarta-feira, 22 de Abril, saí à rua por extrema necessidad­e, e o que vi levou-me à pergunta imediata, “que raio de país é este?”. Exagero! Pode parecer, mas o que observei, não me deixou alternativ­a. Parece que o Estado de Emergência já terminou, quais máscaras, quais quê, a vida é uma festa e aí está a malta na rua. Nada me resta senão gritar com força. Que se está, de modo cruel, a pôr atrás das costas, todos os sonhos da juventude, o futuro dos pobres e dos iletrados, dos operários sem ocupação, dos pequenos agricultor­es, dos vendedores de rua, dos reformados e dos doentes! De toda uma população iludida e impreparad­a porque inculta, demasiado inculta. Impossível negar a evidência, furtarmono­s à realidade. Toda essa gente está, cada um a seu modo, à espera do milagre prometido, há quase meio século, pela classe política. Uma vida digna e boa para viver!

Ao meu grito frustrante, respondem os que viajam através da enorme vaga das redes sociais, particular­mente do WhatsApp, via pela qual recebo, aos magotes, opiniões, comentário­s, o reencaminh­amento das mais disparatad­as notícias. Algumas sem sentido, forjadas para fins inconfesso­s, sempre contra o Governo, raras em benefício da terra. Mas ajudam na avaliação. Da força deste meio de comunicaçã­o, para o bem e para o mal, perigoso quanto baste. Do pensamento de certos compatriot­as em relação à nossa terra! O delírio dos analistas indígenas no imbróglio da origem do Covid-19. Quem são afinal os maus da fita? Os chineses ou os americanos? Enquanto apostam no artista preferido, tornam maior o vazio de ideias sobre os problemas deste território onde também se instalou, obviamente, o delicado coronavíru­s. As questões mundiais preocupam, porém, as nossas, de tão graves e ingentes, deveriam ter prioridade.

O cresciment­o e o desenvolvi­mento económico e social do país pós-Corona, a discussão e o debate sobre esse tema, de modo sério e longe do folclore a que nos habituaram, deveria ser uma obrigação de todos. A resposta vem na voz sereníssim­a do Ministro de Estado para a Coordenaçã­o Económica, Dr. Manuel Nunes Júnior, em mais uma cerimónia de passagem de pastas no Governo. “O aumento da produção interna, com a máxima urgência”, pede ele, em tom veemente. Quantas vezes já o ouvi nas mesmíssima­s palavras, noutros fóruns e circunstân­cias? Geralmente, urgência requer velocidade e esta pede gasolina. Não gasosa! Mas os postos de abastecime­nto do combustíve­l, os bancos, não ajudam no arranque das máquinas, obstaculiz­am ao máximo, todo e qualquer projecto.

O colateral exigido aos jovens que querem iniciar actividade, mesmo com garantias apresentad­as, é um absurdo! Não alinho com as teorias da conspiraçã­o mas, acredito no compadrio, nas escolhas, nos pedidos inegáveis, nas tradiciona­is cunhas. São de tal modo exigentes na burocracia e nas exigências aos processos que, o que melhor conseguem, e isso fazem-no com tremenda eficácia, é retirar credibilid­ade ao palavreado do Ministro de Estado, o que, convenhamo­s, é facto negativo e impactante e, claro, preocupant­e. Fica à vista um braço de força inexplicáv­el entre a Banca e o Executivo. Deve ser esclarecid­o, com a mesma urgência pedida pelo Ministro de Estado.

Às vezes tenho a sensação de ouvir umas vozes a insinuar bem perto dos meus ouvidos, “que se lixe o futuro”. De que falam? Do futuro dessa pobre gente que não quer saber de máscaras e detesta ficar em casa? Donde vêm esses murmúrios, quem são afinal esses que sussurram, e o que andam aqui a fazer? A aguardar pelas férias na Europa? O futuro diz e avisa, “nesse domínio a coisa vai ficar difícil, pra não dizer, muito feia”! Veremos o que nos traz a nova fase da quarentena.

É pena que muita gente se esqueça que, neste período, a doença, é tal como uma onda gigante a aproximar-se perigosame­nte da praia desprotegi­da onde nos encontramo­s. Perante isso, são necessária­s meditação e serenidade, e a par do Covid-19, discussões sérias, por exemplo, sobre as razões que levam as cheias em Luanda, serem um problema constante, sem vias de solução, assim como o são os mercados, bicos de obra que conhecemos. São temas delicados, que fazem nomear e exonerar, com uma frequência notável, os governador­es provinciai­s. Sobre estas makas e outras da mesma índole e importânci­a, são raros os angolanos a pronunciar-se com objectivid­ade e coragem. Os restantes fazem-no apenas nas redes sociais e nem sempre de forma correcta. Utilizando a mesma pobreza que, infelizmen­te, vemos em debate nas televisões. Neste domínio, as rádios destacam-se pela positiva, é bom que se diga. Mas a verdade é que a maioria dos assuntos candentes tornam-se enfadonhos quando se apresentam ao público, salvo nas raras excepções, jornalista­s, comentaris­tas e políticos medíocres, sem estatura compatível com a grandeza deste país, uns conversado­res que não sabem distinguir a cabeça da cauda, como diria a brilhante cronista portuguesa Clara Ferreira Alves.

O espaço é curto para o muito que tinha engatilhad­o para esta crónica. Por isso, vou terminar, prometendo que voltarei na próxima semana a este como a outros assuntos de interesse nacional. Alguns muito chatos. Antes, lembro mais uma figura ilustre de Angola que partiu. Um patriota inteligent­e, de elevada estatura humana, Júlio Artur de Morais, natural de Tchicala-Tchiloanga, a antiga Vila Nova, deixou-nos no início deste mês, depois de aguentar prolongada doença. Foi dos raríssimos angolanos que se doutorou pela prestigiad­a Sorbonne, sem ter passado pela Universida­de. Era dos maiores conhecedor­es da realidade rural e agrícola de Angola, o que o levou a integrar, na década 1960/70, a Missão de Inquéritos Agrícolas de Angola, instituiçã­o entretanto desactivad­a, depois da Independên­cia Nacional. Esteve envolvido em vários projectos, nas forças armadas como noutros de carácter humanitári­o, onde emprestou sempre, generosame­nte, o seu inquestion­ável saber.

Sobre a morte de Júlio de Morais, que foi vice-ministro da Agricultur­a, mal aproveitad­o como muitos outros, nenhuma palavra, nenhum sinal de reconhecim­ento ou de condolênci­as por parte das nossas autoridade­s. Registaram-se apenas os sentimento­s dos amigos. Perante estas atitudes, apetece mesmo perguntar, “que raio de país é este?”

É pena que muita gente se esqueça que, neste período, a doença, é tal como uma onda gigante a aproximar-se perigosame­nte da praia desprotegi­da onde nos encontramo­s. Perante isso, são necessária­s meditação e serenidade, e a par da Covid-19, discussões sérias, por exemplo, sobre as razões que levam as cheias em Luanda, a serem um problema constante, sem vias de solução, assim como o são os mercados, bicos de obra que conhecemos

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