O Jornalismo não está em “modo” espera
O jornalista é, muito provavelmente, quem mais arrisca a vida em ocorrências que a outros grupos profissionais diz particularmente respeito. Está presente em guerras, incêndios, tumultos, sequestros, ataques armados e biológicos, enfim ..., uma curta lista. E nestes tempos de eclosão da ameaça invisível a olho nu, a imprensa é atraída, obviamente, para recolher informações e depoimentos, gravar gestos de coragem e exemplos de sacrifício, registar tragédias familiares e actos de sobrevivência ou juntar provas de sofrimento extremo e acções únicas de voluntarismo que permitem a outros seres humanos continuar em vida.
Nestes dias, o cenário abriu-se, de par em par, a médicos, enfermeiros, analistas clínicos, investigadores, farmacêuticos e a outros profissionais das áreas da Saúde e das Ciências. Mas o panorama também dá primazia ao jornalismo: é preciso que o trabalho de quem está no centro dos acontecimentos saia para o conhecimento público; que o esforço que empreende se conheça e se reconheça; que os problemas com que se confronta encontrem visibilidade; que os riscos a que se sujeita sejam do domínio das pessoas ou que cada perda de vida e cada paciente recuperado sejam avaliados, não enquanto números para as estatísticas gerais, mas como elementos representativos do esforço empreendido e um aprendizado a levar em conta nas intervenções a seguir.
O jornalista é dos que na máxima expressão encarna a dicotomia “bem e mal”, pois o trabalho que faz é muitas vezes reduzido a estes dois conceitos e até mais para o segundo. Aliás, os próprios manuais do jornalismo dão-no, também, em alguns casos, como propenso e permeável ao negativo. É uma realidade incontornável. Nestes tempos de ameaça autêntica à vida de todos e de cada um, ele, o profissional da imprensa, traz, pois, relatos de quase tragédias que acabaram em situações favoráveis, além de outras histórias com final feliz, e não apenas a vertente sinistra dos números.
Neste combate globalizado que se empreende contra o “inimigo público número um”, a principal ameaça à sobrevivência humana, o Jornalismo encontrou o espaço que lhe cabe e procura cumprir a preceito com as obrigações para as quais está talhado. É um momento que deve orgulhar o jornalista cioso das suas obrigações; é o instante em que a importância de um trabalho se revela na sua total amplitude. “Sou jornalista”: deve acreditar quem aceita os riscos inerentes ao ofício e a ele se dedica com a mesma obstinação e igual ansiedade, como quando manteve o primeiro contacto com uma redacção, quer tenha sido levado pela vocação, quer por outra qualquer convicção.
O jornalista reencontra-se, reinventa-se e até reaparece em contextos como o que agora vivemos; chega a abdicar das vantagens (?) que o deixariam fora da frente da informação; não se recolhe à mínima ameaça à sua integridade física; é persistente; é resiliente. A natureza do trabalho que faz obriga-o a reunir esta “capacidade de lidar com problemas, de se adaptar a mudanças, de superar obstáculos e de resistir à pressão”, que, amiúde, resulta de situações adversas às quais se expõe. Ele descobre no esforço de informar a gratidão suprema, a compensação pelo risco e pelas horas ou dias de angústia distante da família e das pessoas por quem sente particular afecto.
Eis o perfil de um artista para o labor intenso e incessante, como só ele. É assim o profissional da imprensa, cuja arte nasce quase sempre do dom privilégio de poucos -, desenvolve-se na prática quotidiana e chega à concretização na cobertura de eventos como o que hoje somos forçados a experienciar. É este o cartão de visita de um personagem forjado nas contingências do diaa-dia; filho da aptidão natural para recolher, produzir e difundir informação sem a qual as sociedades reduzem-se a ninhos de desconhecimento.
E porque o jornalismo também vive e se alimenta de males, de dramas e tragédias, de catástrofes e cataclismos, de cenários apocalípticos, está lá a figura encarregada de narrar para o mundo a realidade de cada contexto: o jornalista. Ele também sofre, claro; tem sensibilidade, daí a profissão. Por isso, muitas vezes, chega a fazer esforços para não dar notícias desagradáveis, destas que destroem sonhos, tolhem famílias ou desmoralizam um povo, um país, uma nação. Mas tem de as dar. É profissional!
E quando já só lhe restam poucas forças, porque alguma maleita ou outros incómodos mais graves lhe limitam os movimentos, o jornalista perscruta o ambiente, busca similitudes com situações que já viveu, faz analogias; ouve rádio, vê televisão, lê publicações, usa o computador e o telefone: tem formas únicas de avaliar. Do canto onde a semi-imobilidade o deixa, verte palavras sobre um papel, umas poucas linhas que sejam, mas suficientes para produzir catarse, para mudar consciências, para fazer chegar informação diferenciada. O jornalista não se recolhe, nunca, porque sequer é um trem de aterragem. Faça-o quem assim se sente.
Jornalista que se preze tem, nestes tempos de flagelo, uma história para contar, um episódio a relatar, necessariamente. O rescaldo dos eventos que a pandemia da Covid-19 tornou trágicos pode dar à luz um qualquer herói, à espera de ser retirado do anonimato; cuja façanha deve ser levada ao conhecimento geral. De outra forma, estar-se-á a negar, agora, a escolha feita no início da carreira: abraçámos todos o jornalismo por opção, num acto voluntário, uns animados pela vocação, outros impulsionados pela simples curiosidade de lhe conhecer os meandros. Que a obrigação de o glorificar seja, então, feita pela nossa própria consciência, venha de dentro de nós, e não resulte de exigência externa.
Nem mesmo os filhos menores de 12 anos e os chamados “factores de risco” que hoje nos mantêm em casa devem constituir razão para que permaneçamos semanas a fio sem construir uma oração. Deixemos o defeso para quem encontra realização pessoal no aconchego do lar. Serviço mais do que essencial, o jornalismo não está em “modo” espera - menos ainda em extinção -, nem o jornalista é espectador. E um e outro também não se confinam às Redes Sociais, a disseminar o falso, a reencaminhar o trivial, a partilhar o atroz ou a desperdiçar críticas negativas a Deus e ao Mundo.
O Jornalismo continua sedento de referências profissionais que o elevem enquanto área do conhecimento e lhe reforcem a função comunicadora. O Jornalismo dispensa a companhia de supostos “parentes próximos”, que só lhe comprometem a cientificidade e quase o reduzem ao mesmo nível degradante que habitam. Ali, onde, ao invés de influenciadores positivos ou até comunicadores, papéis que fingem encarnar, não passam, afinal, de exemplos do grosseiro, do abusivo, do vil e – o mais grave – da falta de compromisso com um saber cuja proficuidade ainda agora mereceu a aclamação do Papa.