Bairro Ritondo
Não fosse o komba de um amigo, nunca tanta gente voltaria a ver o bairro do Ritondo da cidade de Malanje e polirem saudades. Ganhou asfalto a rua principal. Rareia a imagem de gente com latas de água na cabeça. Mas a Lagoa Bar evaporou. Nosso espaço que s
“Abrem-se as cortinas do tempo no meio de bons contadores de estórias. Soltavamse muitas gargalhadas. Todos sonhavam serem ministros, ou empresários”
Pescávamos no restaurante Lagoa Bar. Disseram-me que secou. Era com anzóis que habilmente fabricávamos, atados na ponta da corda e era nesses ganchos que se prendia a isca de minhocas pra atrair peixes, quando burlávamos nossos pais, a tarde, às vezes, aproveitando as borlas.
E assim enchíamos aquários de garrafões de vinho. Mas o Rio Cimento antes cristalino também proporcionava peixinhos pra o aquário e água potável aos moradores das redondezas, quase desapareceu.
Presença massiva só mesmo nos kombas hoje em dia pra lembrar aquele tempo nosso, quando sonhávamos ir à lua (leia-se Luanda). Os pais recusavam. Diziam era uma cidade violenta. Então, nossos familiares iam estudar no Quéssua, onde meu pai ganhou o nome de Dr Sarmento, dizem os colegas da sua geração.
Abrem-se as cortinas do tempo no meio de bons contadores de estórias. Soltavamse muitas gargalhadas. Todos sonhavam serem ministros, deputados e empresários alavancados pelo Banco Nacional de Angola, sem sucesso em tempo de crise.
Depois vem a ondulação quando a conversa versa sobre os desaparecidos durante a guerra, nossos hóspedes do céu como o Beltrano, um jovem piloto. Deixou o fato de casamento ao cuidado do alfaiate desde mil novecentos e oitenta. Também um grande basquetebolista elegante, deveras impressionante no seu uniforme de trabalho; sem esquecer o ilustre professor João Manuel da Cruz.
E a dona Feia artista no fabrico da broa superiormente saborosa. Esposa do Frankilim, ferrenho sportinguista, coabitava com a manada de bois, no fundo do quintal. Ai e o Artur Kipakassa detentor de juntas de burros utilizados como tracção de uma carroça transportadora de pessoas e bens. A velha Maria Conde, terapeuta. Médica tradicional socorria parturientes. O sô Horácio era referência na venda da ginguba torrada. Nem mesmo seus ataques de epilepsia afugentavam a clientela.
Pensava que mais cedo chegasse, mais tempo teria pra diálogo reservado e familiar. Provavelmente assim encontraria menos pessoas. Engano meu. Senti-me ansioso quando constatei presença massiva.
Faltava o Bernabé, também já na hospedaria do céu. Tinha mímica nas veias. Inda miúdo-miúdo desarmava a ira da avó Milagre quando as pedradas sacudiam as mangueiras do seu quintal. De fartos gestos mágicos, pra preencher e encantar o vazio com sonantes gargalhadas, enquadrava a velha numa roda de dança, a cantar em quimbundo.
Nem mesmo o Manuelito, mecânico, irmão do Neto Magia, algum dia conseguiu desparafusar seu rosto. Tempo diferente, porque as mangueiras e goiabeiras frutavam-se de forma espontânea só com água da chuva. Os muros dos quintais já não se ornamentam de musgo como no antigamente.
Dom divino que os homens da administração esqueceram registar com a institucionalização de uma academia de artes cénicas no Ritondo. Levou consigo à sua última morada. Oxalá os futuros gestores das autarquias não se esqueçam. Foi na verdade um cidadão com direito a nome de rua, mas não despidas de placas.
O chuvisco não abrandava. Até porque o kapuka que uns preferiam em detrimento da cuca aguçava a língua. Os empresários deviam analisar esta vantagem pra industrializar nosso aguardente, “Kapuka made in Ritondo”!...
As nuvens negras deixaram de galopar no céu. O vento rodopiava fazendo ballet de poeira e a dançar kuduro. Depois ouvíamos trovoadas sem mais energia. Só desejei que a lama não se transformasse em poeira no asfalto.
Era assim enquanto fui residente do bairro Ritondo durante a estação das chuvas. Era como se o Van desenhasse imagens difusas no céu, quando a água caía em dilúvios.
Falamos depois do Futebol Clube do Ritondo, antigo inquilino do campeonato nacional. Concluímos que kamanguistas da terra devem ter um papel importante na responsabilidade social e logo vieram à memória algumas feras como o Peres, Pinheiro, Gomes Pinto e o falecido Gouveia. Eram excelentes jogadores de futebol. E há um árbitro Carlitos Ambrósio que bem merece mais reconhecimento.
Já quase navegávamos o fim da presença quando o Rui questionou se nós lembrávamos do tio que um dia qualquer sentado no sofá, na sala de visitas, com o rosto encoberto pelas páginas da sua revista favorável escutava a rádio. Despediu-se a informar que uma hora depois regressaria. Isto aconteceu em mil novecentos e setenta e cinco, num mês de Junho e nunca mais regressou.
De rosto virado pra o céu Kota Mário pede que se dê de beber aos mortos com algumas gotas de vinho no chão. Todos conheciam as raízes dos vizinhos, razão porque acrescentou no assunto, paradeiro desconhecido do Soba Cunga do Lau, em Malanje e o filho Luís Cunga em mil novecentos e sessenta e um?
É tempo de um komba geral pra angolanos desaparecidos desde o início da luta de libertação nacional, hóspedes do céu!