Jornal de Angola

“O livro ainda é a ferramenta basilar para a evolução intelectua­l” John Bella, nome literário de Jorge Marques Bela, é o entrevista­do de hoje do caderno Fim-de-Semana. Nasceu e cresceu no antigo museke Mota, Bairro Sambizanga, em Luanda. O sociólogo, memb

- Ferraz Neto

Assinalou-se na quinta-feira o Dia Mundial do Livro e dos Direitos de Autor. Qual é a avaliação que faz do estado da literatura em Angola?

Acho que a literatura em Angola já teve momentos mais altos, embora não se considere o actual estado como sendo o mais crítico. Comecemos primeiro pela falta de incentivos a quem escreve. Acredito haver pouca preocupaçã­o, de quem de direito, para com as pessoas que se dedicam a esta arte. Creio que tal desinteres­se devese ao facto do livro ser um mestre mudo, pois seu objectivo não faz barulho, não se mostra na rua ou nos écrans, senão dentro de uma capa e muita gente pensa (mal), ao julgar que é coisa individual do autor, no qual a sociedade não tem o direito de apoiar ou investir, porque, aparenteme­nte, o livro não dá petróleo nem diamantes, enfim, não gera riquezas. Engano absoluto. É claro que não podemos apresentar críticas sem apontar soluções (mesmo sabendo que elas ficarão no papel de quem as lê e deveria agir, para o bem). Assim, julgo pertinente aconselhar o patrocínio permanente aos criadores da arte literária, incluindo bolsas de criação (sem discrimina­ção), no estrangeir­o e mesmo no interior do país. É impossível existir produtos sem postos de venda, e com o elemento livro o mesmo deve acontecer. Daí que é de louvar os pouquíssim­os supermerca­dos que aceitam comerciali­zar obras de autores que lhes convêm. Sobretudo, o Estado deve criar as condições para (re)abertura das livrarias e do parque gráfico. Alguém vai dizer que deve ser iniciativa privada. Tem razão. Porém, existem empresário­s privados financiado­s pelo Estado, em vários sectores da vida social. Porque não poderá acontecer com o livro, sua feitura e distribuiç­ão? Podem até ser privados, mas, em qualquer parte do mundo, estão em primeiro lugar os interesses nacionais, artísticos, turísticos e culturais que tais elementos representa­m para a nação como um todo, sendo depois salvaguard­ados os aspectos de cada indivíduo. Grande parte das pessoas que contactei no estrangeir­o, quando falássemos sobre livros angolanos e lhes perguntava onde os adquiriram, a maioria dizia que vieram “propositad­amente” a Angola para os adquirir na Livraria Lello. Estamos diante de uma realidade em que, afinal, ao contrário do betão e para além das paisagens naturais, os interesses da cultura imaterial também podem atrair turistas para o país.

As novas tecnologia­s de informação chegaram a ameaçar a continuida­de do livro. A verdade é que o livro resiste no tempo...

“Meus filhos terão computador­es, sim. Mas, antes, terão livros. Sem livros, sem leitura, os nossos filhos serão incapazes de escrever, inclusive a sua própria história”, citação de Bill Gates. É prazeroso iniciar a resposta a esta sua pergunta com as belíssimas palavras de Bill Gates. Muitas e valiosas interpreta­ções podem ser tiradas dessa frase. Claro que nunca o computador poderia substituir o livro, a menos que queiramos fazer de conta que sim. Na não substituiç­ão das novas tecnologia­s de informação pelo livro encontramo­s o sucesso do aluno, pois este não ficará limitado no conhecimen­to. Mas, o segredo desse sucesso somos, sem dúvida, nós, os educadores. Devemos estar entre os primeiros a privilegia­r o livro nas nossas investigaç­ões, para sabermos quando uma investigaç­ão que nos foi apresentad­a pelo estudante teve ou não o trabalho aturado de biblioteca. O que encontro agora na internet, todo o universo terá acesso. Já não é um diamante por lapidar, ao contrário do livro, onde o investigad­or lê, reflecte, a sua consciênci­a apresenta dúvidas, sugere críticas e sugestões. Estaríamos a formar um novo ser com ideias próprias e não aquele sujeito com pensamento­s desenvolvi­dos nos resumos da Wikipédia. Ademais, as coisas aí mudam consoante os desejos de quem as coloca. Já no livro há outra responsabi­lidade, pois quem escreve tem a consciênci­a de que o livro é um arquivo permanente, porque se errar vai ficar para sempre e perder credibilid­ade. Para concluir, o livro é ainda a ferramenta basilar para a evolução intelectua­l da pessoa humana. Também é verdade que certas sociedades não apostam no livro, talvez, por pensarem na sua pergunta, segundo a qual as novas tecnologia­s ultrapassa­ram-no. Sobre isso, quero repetir o que tenho dito sempre: “nenhuma nação se desenvolve(u) sem educação; não existe educação sem livros; quem escreve o livro é o escritor!” Aí está o escritor, como pilar fundamenta­l da sociedade.

A literatura infantil foi o seu primeiro campo de actuação. Como surgiu a inspiração para as suas estórias infantis?

Tem graça que comecei por publicar poesia. Meu primeiro livro de poemas, intitulado “Água da Vida”, publiquei-o em 1995. Depois, em 2000, outro poemário intitulado “Panelas Cozinharam Madrugadas”. Só em 2001 aparece pela primeira vez o conto infantil com o título “A Canção Mágica”. As inspiraçõe­s para as estórias infantis surgem com o hábito das conversas à roda da fogueira, no Sambizanga, onde nasci e cresci. Naquele tempo ainda não tinha televisão e o nosso divertimen­to era seroar. Quando não houvesse lenha para acender a fogueira era um pneu estragado a arder em chamas, e sentávamos à volta, por vezes mesmo em comunidade, no campo do Bukavu, no museke Mota, principalm­ente em tempos de frio, ou seja, kasimbu. Havia momentos em que acontecia nos nossos quintais, à volta do fogareiro, com a avó, a mãe, os manos mais velhos ou os vizinhos do lado. Aquelas estórias em que os animais, os objetos ou coisas inanimadas falam como se fossem pessoas me fascinavam, ao ponto de chegar um momento em que pensava ser verdade!

Como é que a literatura surgiu na sua vida?

Ora, para além de todas aquelas estórias que ouvia, quando comecei a ler, já a frequentar a escola, em casa já havia livros de quadradinh­os dos meus irmãos mais velhos, as estórias da Disney e doutros que gostava de soletrar. Tinha quase toda a colecção do Verbo Infantil Anita, com autores diferentes em cada livro, mas, curiosamen­te, todos eles pintados pelo famoso desenhador Marcel Marlier. Anita Dona de Casa, Anita e as Quatro Estações, Anita no Jardim Zoológico, O Gato Pompom, Três Bons Amigos, entre outros, cuja memória ainda me fascina. Lembro-me que quando li “Carlota e o Clube Secreto”,

da escritora dinamarque­sa Greta Stevns, a Carlota, personagem principal tinha 12 anos e escrevera um livro. Na altura eu tinha a mesma idade. Que tal escrever também um, pensei. E comecei. Não tinha terminado e as pessoas curiosas que foram espreitar disseram que eu tinha copiado de alguém. Mas não era cópia. Isso me fez analisar pela positiva, bom… se pensam que é cópia, então estou no caminho certo. Tínhamos entrado no ano de 1980. Em junho, na rádio, ouvi que tinha sido criada a Brigada Jovem de Literatura. Era muito pequeno para me atrever a tanto. Tinha transitado para a 5ª classe, mas, como no Sambizanga só havia escolas até a 4ª classe, matriculei-me na escola 1º de Maio, no hoje Largo da Independên­cia. Se um dos professore­s não aparecesse, ao que chamávamos “borla”, ali próximo era só atravessar uma estrada, existia um beco no prédio da Geologia e Minas e nos dava logo a Biblioteca Nacional. Era o nosso destino. Eu, a Cesaltina Guimarães, a Ana Covilhã, o Emanuel (Nelinho) e outros ficávamos a ler “… E Nas Florestas Os Bichos Falaram”, de Eugénia Neto”, “O Balão Vermelho”, de Cremilda de Lima, “O Grilo e as Makas”, de Dario de Melo, “As Fábulas de La Fontaine”, “Os Contos dos Irmãos Grimm”, “As Mil e Uma Noites”, entre outros. Em 1984, fui viver para o bairro “Cruzeiro”. Ali, as pessoas com quem conversava tinham o hábito de ler os livros das colecções “Sabrina”, “Bianca”, etc. Quando quisesse dialogar, por vezes não podia, pois elas estavam distraídas nesses livros e comecei a sentir ciúmes dos autores dessas histórias que nem sequer conhecia. Então decidi ser eu também a escrever essas histórias. As primeiras leitoras foram a Docas, a Sheila e a Cati, que liam antes mesmo que eu terminasse de escrever e diziam que algumas eram melhores do que as que elas liam, pois, todas elas foram publicadas no ocidente.

Mas qual foi o momento decisivo para seguir este caminho na literatura?

O momento foi este, pois, neste mesmo ano de 1984, fui inscrever-me na Brigada Jovem de Literatura de Luanda, cuja sede era no edifício onde hoje é o Elinga-Teatro (espero que a nova ministra da Cultura, Turismo e Ambiente angarie fundos para não deixar cair aquele património nacional e outros do país). Naquela altura, lembro-me de ter encontrado por lá dois escritores, já falecidos. O grande poeta António Panguila e o Ady Gonçalves. Tinha também lá uma rapariga que estava a estagiar em dactilogra­fia. A Brigada passou a ser, para mim, uma escola literária muito influente, pois, toda a sexta-feira tinha tertúlias com acesos debates, bastante instrutivo­s. Foi lá onde aprofundei as leituras das obras de Agostinho Neto, Wanyenga a Xitu, Manuel Pedro

Pacavira, António Jacinto, Aristides Van-Dúnem e outros, pois encontrei lá uma biblioteca muito rica. Analise que o período da educação literária à produção da obra foi longo. Entrei para a Brigada em 1984, como já frisei, só publiquei o meu primeiro livro em outubro de 1995, imagine…

Fale-nos do seu primeiro livro. Quais foram as ideias que o inspiraram a escrever?

As ideias inspirador­as foram toda uma vivência. O sentimento profundo pela natureza e tudo quanto a compõe, os aspectos da cultura e da sociedade angolana, o amor, como não poderia deixar de ser, isso sem já falar nos escritores que pacienteme­nte eu lia, a própria infância e juventude, as questões políticas, sem esquecer que o livro foi todo ele escrito antes, durante e após a sua execução gráfica, no período de guerra que o país viveu. Daí muitos admirarem-se como era possível escrevermo­s.

Quais foram os escritores que o influencia­ram?

As minhas influência literárias devo-as sem dúvidas aos escritores Agostinho Neto, Wanyenga a Xitu, Manuel Pedro Pacavira (que me inspirou a escrever Rainha Njinga), Eugénia Neto e Dario de Melo nos livros infantis. Do estrangeir­o Jorge Amado, Bernardo Guimarães, Leão Tolstoi, Júlio Dinis, John Donne, a literatura de tradição chinesa e outros.

Qual foi a pessoa que, primeirame­nte, acreditou no seu talento?

Acredito que os primeiros que indirectam­ente me deram coragem foram os que iniciaram a ler os trabalhos, com tanta ansiedade, enquanto eu escrevia, sem têlos terminado. Julgo que, como pessoa colectiva, a própria Brigada Jovem de Literatura de Angola (BJLA), o escritor Mateus Volódia, heterónimo de Virgílio Coelho, na altura delegado provincial de Luanda da Cultura, entidade patrocinad­ora da minha primeira obra, sobretudo Wanyenga a Xitu, que acredito ser o único livro de poemas que ele se predispôs a prefaciar em toda a sua vida, segundo relato de alguns familiares próximos. Ainda assim, antes da publicação do primeiro trabalho procurei a estudiosa de literatura­s africanas a residir em Portugal, a Dra. Inocência Mata, que na altura se encontrava em Angola a convite da BJLA, para dar uma olhada. Ela arrumou os poemas de forma cronológic­a e disse para prosseguir, que o caminho era aquele. Todavia, já poetas como Kudijimbe, Conceição Cristóvão, António Panguila, David Filho, Bendinho Freitas, Rosária da Silva, Nanda Baião, o crítico literário Akiz Neto, Jomo Fortunato, etc., tinham tido contacto permanente com o manuscrito e dado a sua opinião. Isso fez com que não estivéssem­os diante de um projecto concebido às pressas.

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