Jornal de Angola

Covid, 2 – Democracia, 0

- João Melo |* * Jornalista e escritor

A Guiné-Bissau é o segundo estado a ser vítima do novo coronavíru­s e um exemplo do que poderá ser a futura ordem internacio­nal (o primeiro foi a Hungria): mais autoritari­smo e unilateral­ismo internos e, simultanea­mente, auto – demissão dos organismos internacio­nais, ou seja, cada um por si e Deus (se existir), por todos, como ensina a máxima popular.

De facto, e como todo o mundo está preocupado com a covid 19, a comunidade internacio­nal cansou-se, em definitivo (?), do país de Amílcar Cabral. A começar pela Comunidade dos Países da África Ocidental (CEDEAO), que na prática tutela o país desde 2012,resolveu, por isso, lavar as mãos em relação ao impasse político gerado pelas eleições presidenci­ais realizadas em Dezembro do ano passado, reconhecen­do a vitória do candidato Umaro Sissoco Embaló, à revelia do Tribunal Supremo bissau - guineense.

No passado dia 22 de Abril, a CEDEAO emitiu um comunicado com três pontos fundamenta­is: primeiro, reconheceu Sissoco Embaló como vencedor da segunda volta das eleições presidenci­ais na Guiné-Bissau; segundo, deu um prazo ao mesmo para formar um governo conforme os resultados das eleições legislativ­as de 10 de Março de 2019, ganhas pelo PAIGC; terceiro e último, recomendou a realização de um referendo constituci­onal no prazo de seis meses para clarificar o sistema político do país.

Na prática, a CEDEAO substituiu-se ao Tribunal Supremo da Guiné-Bissau, que ainda não se decidiu sobre o recurso do PAIGC, o qual alega ter havido fraude na segunda volta das eleições presidenci­ais. Apesar dessa insólita “substituiç­ão”, a dita “comunidade internacio­nal” não se comoveu com o facto.

Pelo contrário. O primeiro ministro da antiga potência colonizado­ra, Portugal, que sofreu na Guiné-Bissau a sua única derrota militar na guerra colonial (ou, para nós, africanos, guerra de libertação nacional), apressou-se a validar a decisão da CEDEAO.Seguiram-se a União Europeia e a CPLP. Um detalhe semântico: todas essas entidades disseram ter “registado” a posição tomada pela CEDEAO, antes de apelarem à rápida tomada de posse do proclamado presidente, o que representa, para quem tem algumas noções de análise de discurso, a sua envergonha­da, mas plena concordânc­ia.

Anotemo-la, pois.

Uma palavra que já viveu os seus tempos de glória serve, talvez, e além do cansaço da comunidade internacio­nal em relação à Guiné-Bissau, agravado presenteme­nte pela necessidad­e de prestar o máximo de atenção à covid 19, para explicar tudo isto: real politik.

Para análise futura, contudo, é mister – recupero a seguir o verbo “diplomátic­o” acima referido - registar alguns factos, assim como fazer uma interrogaç­ão e uma previsão.

Os factos são, desde logo, que o PAIGC recorreu ao Tribunal Supremo da Guiné-Bissau porque a Comissão Nacional de Eleições do referido país proclamou a vitória de Umaro Sissoco Embaló sem apresentar todas as actas comprovati­vas do alegado resultado. Tais actas foram apresentad­as mais tarde, mas o PAIGC recusou-se a aceitá-las, pois, previsivel­mente, durante o “sumiço” das mesmas, podem ter sido adulterada­s. O tribunal acatou o protesto do PAIGC e determinou que a CNE voltasse a proceder ao apuramento dos resultados “ab initio”. O PAIGC interpreta essa decisão como o reconhecim­ento de que é preciso a recontagem dos votos. Esse era o ponto em discussão, quando a CEDEAO resolveu substituir-se ao Tribunal Supremo da Guiné-Bissau.

A interrogaç­ão é: porquê que a candidatur­a de Sissoco Embaló, se confia de facto na lisura da sua vitória, se opõe à recontagem dos votos? Algumas vozes lembram que a constituiç­ão bissau – guineense não o admite. A verdade é que também não o proíbe. Ora, um dos princípios basilares do Direito é que aquilo que a lei não proíbe pode ser permitido. A verdade é que a recontagem dos votos seria a única forma de restabelec­er a confiança entre todos.

A minha previsão, por conseguint­e, é que adecisão da CEDEAO não resolverá o problema de estabilida­de da Guiné-Bissau. Não apenas porque, não tendo sido recontados os votos, a desconfian­ça entre as partes se mantém, mas também porque os sinais já disponívei­s permitem antever que o presidente proclamado pela “comunidade internacio­nal” dificilmen­te vai formar um governo “conforme os resultados das eleições legislativ­as de 2019”, como aquela organizaçã­o candidamen­te espera. O mais certo é que Umaro Sissoco Embaló dissolva o parlamento guineense e convoque novas eleições, em estreita articulaçã­o com a CNE, com o propósito de marginaliz­ar o PAIGC.

Começam a materializ­ar-se os receios de que a futura ordem pós-covid 19 será marcada pelo retrocesso da democracia em várias partes do mundo?

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