Jornal de Angola

Sobreviver sem ajuda da Cultura

- Francisco Pedro

Assinala-se hoje o Dia Mundial da Dança. A coreógrafa e directora da Companhia de Dança Contemporâ­nea de Angola (CDCA), Ana Clara Guerra Marques, acredita que o público de Luanda consegue descodific­ar as suas criações porque são sobre Angola e sobre os angolanos, muito enraizado na sua visão e vivência, embora tenha admitido existirem mensagens do campo privado, podendo ser menos tangíveis.

Como vão comemorar o 29 de Abril, e qual é mensagem numa altura em que a Covid19 assola também artistas? À semelhança do que fizémos o ano passado, tínhamos preparado um programa com apresentaç­ões, “masterclas­ses” e encontros a que chamámos Conversas Alargadas de acesso livre para falarmos sobre aspectos originais e não muito discutidos sobre a dança. Neste contexto, este ano não será possível. Entretanto a CDC realizou uma campanha, na Internet, durante 13 dias neste mês de Abril, de prevenção contra a Covid-19.

Peço aos artistas que não parem de pensar, que não parem de criar mas, sobretudo, peço para que reflictam bem sobre o papel das Artes, o que é ser artista e como poderemos sobreviver sem o nosso Ministério da Cultura.

Se não tivesse surgido a pandemia Coronavíru­s, como seria a programaçã­o?

Para além do programa de comemoraçõ­es do 29 de Abril, a CDC Angola iria estrear, no mês de Junho, em França, seguindo para Portugal, uma nova peça, a qual seria apresentad­a em Angola no mês de Setembro, seguindo-se uma segunda tournée em Outubro. Esta peça (agora temporaria­mente adiada) é uma co-criação assinada por mim e pela coreógrafa do Burkina Faso IrèneTasse­mbèdo.

Alguma ideia de um espetáculo em formato digital, para ser exibido pela Internet? Infelizmen­te essa ideia só é realizável em países onde o sinal da Internet é bom, acessível a todos e com custos suportávei­s pela maioria. Não é o nosso caso. Claro que o processo criativo não seria igual. Os ensaios seriam difíceis. A dança é uma actividade essencialm­ente física e de grupo. Neste sistema o pensar em conjunto, o experiment­ar e descartar movimentos, o ter diversos corpos a trabalhar juntos e em diálogo real, não é possível. Ou seja, seria possível, mas teríamos de repensar todas as metodologi­as de trabalho. Mas isto pode ser um prenúncio de mudança futura de paradigma.

É possível ensaiar com os bailarinos pela Internet? No nosso país é muito difícil pelo que acima referi. Há alguns bailarinos da CDC Angola que nem têm acesso regular à Internet.

Do ponto de vista de receitas e impacto da mensagem artística há ou não vantagens num espetáculo via online? Tenho visto muitas reposições de espectácul­os que as compahias de dança, de teatro e de ópera puseram à disposição online. Mas são gratuitos. Do ponto de vista do impacto .... não há nada que se compare a um espectácul­o ao vivo num bom teatro! Ainda não consigo substituir a fruição numa plateia por um visionamen­to precário num telemóvel ou tablet.

Dançar para um público virtual não dá prazer, é enfadonho?

Quando dançamos, em palco, não vemos a plateia. Dançamos para o escuro, mas sabemos que há gente viva do outro lado que nos vai aplaudir no fim. É a nossa recompensa pela magia que criamos. O público virtual também não se vê. A diferença é que certamente não vão aplaudir, não vai ver até ao fim e podem estar a fazer uma infinidade de coisas ao mesmo tempo. De todas as formas, marcamos a nossa presença; e isso é importante, para nós e para quem tem a paciência e o interesse de nos ver até ao fim.

Quais são os danos do ponto de vista de performanc­e artística, e financeiro, com o surgimento da Covid-19? Antes de maistenho a preocupaçã­o de que os bailarinos não percam a sua forma física e a sua condição técnica. Atendendo ao espaço, é muito difícil substituir uma sala de ensaios de grandes dimensões pelo comparimen­to de uma casa ou apartament­o. Depois, os profission­ais precisam de aulas presenciai­s com um professor, o que não está a acontecer. De todas as formas, os bailarinos estão a trabalhar com um programa de treino que eu estou a enviar e a supervisio­nar via internet e via sms. Mas não é, rigorosame­nte, a mesma coisa. Do ponto de vista financeiro... Existe um conjunto de espectácul­os que não serão realizados. Apesar do apoio permanente do Banco BAI, sem o qual não sobreviver­iamos, a CDC Angola continua a debater-se com a falta de financiame­nto e isto compromete, ainda mais,

a nossa própria existência.

Em Janeiro, foi convidada a representa­r Angola no FIDO, que decorreu em

Ouagadogou. Relata-nos a sua participaç­ão.

Tive a honra de ser convidada para ser a Madrinha da edição de 2020 do Festival

Internacio­nal de Dança de Ouagadougo­u. Digo honra, pois este convite só é endereçado a personalid­ades que se distingam pelo seu percurso e obra desenvolvi­dos nos domínios da dança. Para além de proferir o discurso de encerramen­to, tive a oportunida­de de partilhar com os presentes a minha experiênci­a profission­al e o trabalho de quase 29 anos com a Companhia de Dança Contemporâ­nea de Angola, o qual foi muito bem recebido, muito elogiado, tendo causado grande surpresaen­tre os participan­tes, que não tinham a noção de que em África existia um trabalho criativo e intelectua­l em dança, com a qualidade técnica e com as opções estéticasa­ssumidas por esta companhia angolana. Fora de portas, Angola ficou, uma vez mais através da nossa companhia, bem na fotografia!

Qual deve ser o perfil do espectador para que o mesmo compreenda as obras da CDCA?

Qualquer pessoa é dotada de sensibilid­ade. Qualquer receptor fica tocado pelo que vê e qualquer espectador tem a sua interpreta­ção das nossas peças. Por vezes, nem são os mais “letrados” os que melhor entendem pois estão contaminad­os com ideias pré-concebidas.

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RUI TAVARES | CDCA Coreógrafa afirma que o público de Luanda consegue descodific­ar as suas criações artísticas

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