Sobreviver sem ajuda da Cultura
Assinala-se hoje o Dia Mundial da Dança. A coreógrafa e directora da Companhia de Dança Contemporânea de Angola (CDCA), Ana Clara Guerra Marques, acredita que o público de Luanda consegue descodificar as suas criações porque são sobre Angola e sobre os angolanos, muito enraizado na sua visão e vivência, embora tenha admitido existirem mensagens do campo privado, podendo ser menos tangíveis.
Como vão comemorar o 29 de Abril, e qual é mensagem numa altura em que a Covid19 assola também artistas? À semelhança do que fizémos o ano passado, tínhamos preparado um programa com apresentações, “masterclasses” e encontros a que chamámos Conversas Alargadas de acesso livre para falarmos sobre aspectos originais e não muito discutidos sobre a dança. Neste contexto, este ano não será possível. Entretanto a CDC realizou uma campanha, na Internet, durante 13 dias neste mês de Abril, de prevenção contra a Covid-19.
Peço aos artistas que não parem de pensar, que não parem de criar mas, sobretudo, peço para que reflictam bem sobre o papel das Artes, o que é ser artista e como poderemos sobreviver sem o nosso Ministério da Cultura.
Se não tivesse surgido a pandemia Coronavírus, como seria a programação?
Para além do programa de comemorações do 29 de Abril, a CDC Angola iria estrear, no mês de Junho, em França, seguindo para Portugal, uma nova peça, a qual seria apresentada em Angola no mês de Setembro, seguindo-se uma segunda tournée em Outubro. Esta peça (agora temporariamente adiada) é uma co-criação assinada por mim e pela coreógrafa do Burkina Faso IrèneTassembèdo.
Alguma ideia de um espetáculo em formato digital, para ser exibido pela Internet? Infelizmente essa ideia só é realizável em países onde o sinal da Internet é bom, acessível a todos e com custos suportáveis pela maioria. Não é o nosso caso. Claro que o processo criativo não seria igual. Os ensaios seriam difíceis. A dança é uma actividade essencialmente física e de grupo. Neste sistema o pensar em conjunto, o experimentar e descartar movimentos, o ter diversos corpos a trabalhar juntos e em diálogo real, não é possível. Ou seja, seria possível, mas teríamos de repensar todas as metodologias de trabalho. Mas isto pode ser um prenúncio de mudança futura de paradigma.
É possível ensaiar com os bailarinos pela Internet? No nosso país é muito difícil pelo que acima referi. Há alguns bailarinos da CDC Angola que nem têm acesso regular à Internet.
Do ponto de vista de receitas e impacto da mensagem artística há ou não vantagens num espetáculo via online? Tenho visto muitas reposições de espectáculos que as compahias de dança, de teatro e de ópera puseram à disposição online. Mas são gratuitos. Do ponto de vista do impacto .... não há nada que se compare a um espectáculo ao vivo num bom teatro! Ainda não consigo substituir a fruição numa plateia por um visionamento precário num telemóvel ou tablet.
Dançar para um público virtual não dá prazer, é enfadonho?
Quando dançamos, em palco, não vemos a plateia. Dançamos para o escuro, mas sabemos que há gente viva do outro lado que nos vai aplaudir no fim. É a nossa recompensa pela magia que criamos. O público virtual também não se vê. A diferença é que certamente não vão aplaudir, não vai ver até ao fim e podem estar a fazer uma infinidade de coisas ao mesmo tempo. De todas as formas, marcamos a nossa presença; e isso é importante, para nós e para quem tem a paciência e o interesse de nos ver até ao fim.
Quais são os danos do ponto de vista de performance artística, e financeiro, com o surgimento da Covid-19? Antes de maistenho a preocupação de que os bailarinos não percam a sua forma física e a sua condição técnica. Atendendo ao espaço, é muito difícil substituir uma sala de ensaios de grandes dimensões pelo comparimento de uma casa ou apartamento. Depois, os profissionais precisam de aulas presenciais com um professor, o que não está a acontecer. De todas as formas, os bailarinos estão a trabalhar com um programa de treino que eu estou a enviar e a supervisionar via internet e via sms. Mas não é, rigorosamente, a mesma coisa. Do ponto de vista financeiro... Existe um conjunto de espectáculos que não serão realizados. Apesar do apoio permanente do Banco BAI, sem o qual não sobreviveriamos, a CDC Angola continua a debater-se com a falta de financiamento e isto compromete, ainda mais,
a nossa própria existência.
Em Janeiro, foi convidada a representar Angola no FIDO, que decorreu em
Ouagadogou. Relata-nos a sua participação.
Tive a honra de ser convidada para ser a Madrinha da edição de 2020 do Festival
Internacional de Dança de Ouagadougou. Digo honra, pois este convite só é endereçado a personalidades que se distingam pelo seu percurso e obra desenvolvidos nos domínios da dança. Para além de proferir o discurso de encerramento, tive a oportunidade de partilhar com os presentes a minha experiência profissional e o trabalho de quase 29 anos com a Companhia de Dança Contemporânea de Angola, o qual foi muito bem recebido, muito elogiado, tendo causado grande surpresaentre os participantes, que não tinham a noção de que em África existia um trabalho criativo e intelectual em dança, com a qualidade técnica e com as opções estéticasassumidas por esta companhia angolana. Fora de portas, Angola ficou, uma vez mais através da nossa companhia, bem na fotografia!
Qual deve ser o perfil do espectador para que o mesmo compreenda as obras da CDCA?
Qualquer pessoa é dotada de sensibilidade. Qualquer receptor fica tocado pelo que vê e qualquer espectador tem a sua interpretação das nossas peças. Por vezes, nem são os mais “letrados” os que melhor entendem pois estão contaminados com ideias pré-concebidas.