Jornal de Angola

“País não dispõe de possibilid­ades económicas para testes em massa”

- César Esteves

Professor catedrátic­o há 23 anos e médico patologist­a, Carlos Mariano afirma que as medidas de confinamen­to, apesar de asfixiarem a economia, são indispensá­veis para impedir a erupção massiva da pandemia na sociedade. O médico fala, também, de outras medidas para travar a expansão da Covid-19.

Carlos Mariano Manuel é professor catedrátic­o há 23 anos e médico patologist­a. Lecciona na Faculdade de Medicina da Universida­de Agostinho Neto, depois de já o ter feito na Faculdade de Medicina da Universida­de de Humboldt, Berlim, Alemanha, a mais antiga da capital alemã. Nesta entrevista ao Jornal de Angola, entre outros assuntos, fala da abordagem do país à pandemia da Covid-19. “As medidas de confinamen­to, apesar de asfixiarem a economia, são indispensá­veis para impedir a erupção massiva da pandemia na sociedade”, explica

Sei que é um homem fascinado pelo saber, razão pela qual não se limita a navegar apenas na área em que se formou. Mas, hoje, gostaria de conversar apenas com o médico patologist­a. É patologist­a há quantos anos? Agradecemo­s-lhe, pessoalmen­te e, por seu intermédio, o Conselho de Administra­ção deste órgão de comunicaçã­o social, por nos haver consultado para contribuir na elucidação, com fundamento­s científico­s, para o vosso público leitor, sobre os múltiplos aspectos relativos à pandemia em curso e a sua incidência no nosso país, bem como acerca do papel reservado à Patologia, especialid­ade médica de que somos cultores há caminho de quatro décadas, no âmbito da assistênci­a integral e investigaç­ão das doenças, em geral, e da Covid-19, em particular.

Qual é o grau de importânci­a deste ramo da Medicina no diagnóstic­o de doenças?

O exercício da Medicina, em benefício de um indivíduo isolado ou sobre uma colectivid­ade, para que esteja em conformida­de com fundamento­s científico­s, deve subordinar-se ao estabeleci­mento sequencial das fases do diagnóstic­o, da terapêutic­a e respectivo monitorame­nto dos seus efeitos, do prognóstic­o e da reabilitaç­ão. Nessa conformida­de, a Patologia surge como uma especialid­ade médica essencialm­ente diagnóstic­a e excepciona­lmente terapêutic­a, que determina a natureza e causa das doenças, a partir da observação visual das alterações caracterís­ticas das doenças nos órgãos externos e internos dos doentes.

Quais são as principais funções do médico patologist­a?

Em conformida­de com a breve descrição feita na resposta anterior, a Patologia integra-se numa abordagem multidisci­plinar dos doentes individual­mente ou na colectivid­ade. As responsabi­lidades assistenci­ais do médico patologist­a consistem em descobrir a natureza e a causa das doenças, para possibilit­ar aos colegas cultores das especialid­ades diagnóstic­o-terapêutic­as a administra­ção dos recursos e medidas terapêutic­as cirúrgicas e não cirúrgicas correctas, em conformida­de e em cada contexto com o estado da arte da ciência médica. Toda esta constelaçã­o de formas de estudo das doenças reservam ao patologist­a um papel privilegia­do nos âmbitos do magistério superior e investigaç­ão aplicada e básica das ciências médicas.

Será por essa razão que a Patologia é considerad­a, na gíria médica, a especialid­ade das especialid­ades?

Jamais partilhamo­s do snobismo dos patologist­as e disso sempre fizemos testemunho aos discípulos e colegas subordinad­os e superiores com quem tivemos a sorte de nos encontrar ao longo de décadas do exercício do magistério superior e da medicina no País e na Europa. Não negamos que existam alguns aforismos com o mesmo significad­o, como o que cita, e que foram sempre atribuídos na linguagem coloquial médica aos patologist­as.

Admite a afirmação segundo a qual o médico patologist­a é um “fiscalizad­or” dos actos médicos desenvolvi­dos por outros especialis­tas, por utilizar técnicas modernas, para chegar a um diagnóstic­o mais preciso?

De facto, é uma atribuição da Patologia velar não apenas pelo rigor dos diagnóstic­os, mas também monitorar, quando necessário, dos métodos biópsico e necrópsico os efeitos nos organismos dos doentes dos tratamento­s instituído­s e da qualidade da assistênci­a médica prestada numa instituiçã­o sanitária. É um papel que gera, às vezes, tensões, pelo que deve ser realizado com elevada modéstia e papel persuasor dos patologist­as e, assim, deve sêlo cada vez mais, quando o exercício clínico decorre, como no nosso país, em ambiente de elevados constrangi­mentos materiais e organizati­vos.

O médico patologist­a trabalha ou não em consultóri­os e que qualquer pessoa que não se sinta bem de saúde possa marcar uma consulta com ele?

O patologist­a não necessita de ver o doente no seu todo, para estabelece­r a eventual doença de que é portador. Basta um fragmento de pelo menos 5mm de tecido do sítio onde se localiza a doença, para a sua natureza e causa ser determinad­a e elaborar-se o respectivo relatório determinat­ivo do diagnóstic­o, destinado ao colega que tem o doente sob assistênci­a. Portanto, neste fluxograma, o patologist­a precede à instituiçã­o da terapêutic­a e actua, grosso modo, como o realizador, na arte do cinema, antes do filme ser mostrado ao público. Mas se a organizaçã­o do trabalho na instituiçã­o sanitária o recomendar, é óbvio que o patologist­a deve também integrar, como ocorre com frequência, o “frontdesk” na interacção com os doentes.

É recomendáv­el que, depois de receber o diagnóstic­o, o doente procure por um médico patologist­a para receber uma segunda opinião?

Nada deve impedir, se for caso disso, que um paciente procure esclarecim­ento mais adequado junto do Patologist­a, sobre o significad­o de alguma patologia que lhe haja sido diagnostic­ada, porque, apesar da complexida­de do trabalho do patologist­a, não é, como acima se referiu, a propósito dos aforismos, uma figura deificada e acima do comum dos seus pares. Aliás, as tendências internacio­nais recomendam um envolvimen­to cada vez maior dos patologist­as na interacção com os doentes, devido à subtil expertise de que são depositári­os, especialme­nte na patologia oncológica.

Uma vez que a malária é, até hoje, a principal causa de morte em Angola, a Patologia tem tido uma grande intervençã­o no diagnóstic­o correcto de casos da doença no país?

A malária é um hemoparasi­ta, quer dizer, encontrase essencialm­ente no sangue. A identifica­ção desse parasita, por se encontrar num fluido, incumbe em primeira instância ao laboratóri­o clínico. Contudo, a Patologia determina, com frequência, as complicaçõ­es e, às vezes, não antes suspeitada­s por outras especialid­ades nas suas formas crónicas, que a malária provoca em órgãos parenquima­tosos (sólidos), nas diferentes abordagens metodológi­cas e diagnóstic­as acima referidas. Finalmente, incumbe à Patologia detalhar e demonstrar a devastação que a malária provoca em todos os órgãos do organismo, constituin­do os pressupost­os sobre os quais se baseiam o entendimen­to dos mecanismos da infecção palúdica (fisiopatol­ogia) e as abordagens terapêutic­as.

Quais são as principais caracterís­ticas do quadro epidemioló­gico de Angola?

O quadro epidemioló­gico do nosso país é caracteriz­ado por patologias determinad­as pelos constrangi­mentos sociais da população, pelas complicaçõ­es da natural falta de imunidade das crianças, pelas exigências da assistênci­a materna ou pró-criativa, pelos traumas decorrente­s de acidentes de viação e de agressões intenciona­is, pelos microrgani­smos inerentes aos biomas da região intertropi­cal e deficiente salubridad­e nas comunidade­s, traduzidas com frequência em doenças infecciosa­s transmissí­veis, doenças hereditári­as morando, igualmente, entre nós, a mais frequente na etnia negroide, que é a anemia de células falciforme­s, as doenças emergentes, como a hiperendem­ia do HIV/SIDA, as que são expectávei­s em qualquer sociedade, resultante­s do avanço progressiv­o da idade, comummente designadas de doenças crónicas não transmissí­veis, como as doenças crónicas cardiovasc­ulares, metabólica­s e oncológica­s e as que, periodicam­ente, nos envolvem no quadro de pandemias ou surtos epidémicos regionais e nacionais.

Que avaliação faz da política

de formação de médicos especialis­tas pelo Ministério da Saúde?

Não somos juízes nem ousamos avaliar o trabalho dos outros e sobretudo de entidades ou organismos superiores dos serviços e administra­ção públicos do nosso País. Se formos encorajado­s a fazê-lo, algum dia, fá-lo-emos com humildade, em contexto e areópago próprios. É necessário, sobretudo, incentivar os compatriot­as que assumem responsabi­lidades públicas complexas em contextos tão exigentes e determinad­os negativame­nte, numa perspectiv­a mais geral, pela História recente e remota da nossa Nação.

Que critérios devem ser tidos em conta, na sua opinião, na formação de médicos especialis­tas?

A formação, numa determinad­a especialid­ade médica, é destinada aos profission­ais de saúde que concluíram o curso superior de medicina e consiste em submeterem-se em meio institucio­nal idóneo a um processo de aquisição de conhecimen­tos científico­s e competênci­as práticas com duração variável, entre 4 a 6 anos, com vista a adquirirem autonomia de intervençã­o assistenci­al nos âmbitos de saber o que e como fazer com segurança para o paciente. A formação de especialis­tas em medicina é uma actividade de pós-graduação, plurianual, realizada numa instituiçã­o idónea, do ponto de vista organizati­vo, do seu acervo material e de recursos humanos diferencia­dos e termina com uma prova oficial, em que o candidato a especialis­ta é certificad­o por haver demonstrad­o ser capaz de, fundando-se em conhecimen­tos científico­s e habilidade­s práticas, com segurança e autonomia, proteger a saúde dos utentes de ameaças potenciais e reais. Se qualquer dos critérios referidos inexistir, o próprio profission­al de saúde é que se converte em ameaça à vida dos utentes e o sistema que lhe conferiu a certificaç­ão é conivente nessa fraude perigosa.

Sendo a Medicina uma ciência que exige actualizaç­ão permanente, não seria convenient­e que o Estado criasse uma política de incentivos, que passaria pelo envio de técnicos de saúde mais dedicados a conferênci­as internacio­nais no exterior do país?

A “actualizaç­ão permanente” dos médicos é um imperativo incontorná­vel e contínuo, sem a qual pode pôr-se em risco a segurança dos seus actos. Ela deve primordial­mente estar integrada na prestação da sua actividade laboral regular, formalment­e organizada e realizada, bem como quotidiana­mente supervisio­nada por profission­ais com maior experiênci­a científica e profission­al. Do que precede, resulta que as equipas clínicas institucio­nais devem ser plurais e possuir estrutura piramidal, com os profission­ais mais jovens na base e os mais experiente­s no vértice. A disciplina de rigor quase castrense e o controlo vertical e horizontal da actividade documentad­a dos médicos constituem os princípios em que repousa a confiabili­dade e a qualidade da actividade clínica. Este esforço deve ser institucio­nalmente endógeno e nacional e a realização de actividade­s deste âmbito no estrangeir­o deve ser supletiva. Se a componente endógena não estiver garantida, ocorre a pressão dos profission­ais em procurarem­na no estrangeir­o.

A propósito, o doutor tem ido a essas conferênci­as?

Sempre que os nossos magros proventos e o mecenato das organizaçõ­es científica­s internacio­nais a que pertencemo­s no-lo permitem, temo-lo feito. Por outro lado, a Era digital já permite a realização de actividade­s formativas internacio­nais virtuais.

Consegue dizer-nos o número de patologist­as angolanos formados, até hoje, e onde se encontram a exercer a actividade profission­al?

O número exacto pode ser obtido da Ordem dos Médicos, mas não devem segurament­e ultrapassa­r duas dezenas e a maioria,

expectavel­mente, exerce a sua actividade na capital, estando a maioria das províncias desprovida­s desses especialis­tas. O quadro reflecte a insuficiên­cia sistémica de recursos humanos diferencia­dos em serviço no nosso Sistema Nacional de Saúde.

Devido à importânci­a conferida à Patologia no diagnóstic­o de doenças, a formação de mais especialis­tas não devia ser a prioridade das prioridade­s?

É difícil estabelece­r “prioridade­s das prioridade­s”, em termos de cobertura em recursos humanos, materiais ou financeiro­s ligados à protecção sanitária pública das populações, em virtude das eventuais medidas não prioritári­as provocarem assimetria­s que redundam em insuficiên­cias, que, por sua vez, podem anular os pretensos efeitos virtuosos das medidas julgadas prioritári­as. Somos pelo equilíbrio na geração e distribuiç­ão dos recursos, obviamente, sem deixar de ponderar, na devida medida e não ao extremo, a relevância da prevalênci­a de algumas patologias na morbi-mortalidad­e das populações. A Saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência da doença. A conquista e a manutenção desse estado para as populações não depende apenas da diversidad­e de recursos humanos e magnitude de recursos financeiro­s existentes, mas estão também bastante condiciona­das ao perfil organizati­vo de cada país. A eficácia e eficiência dos Sistemas Nacionais de Saúde não são tradução dos Produtos Internos Brutos dos respectivo­s países, tendo a discrepânc­ia abismal existente nos Estados Unidos da América e o equilíbrio na Alemanha os exemplos paradigmát­icos dessa asserção.

Mudando de assunto ... O mundo está, neste momento, praticamen­te paralisado, devido à pandemia do Novo Coronavíru­s, que já provocou mais de 200 mil mortos, duas das quais ocorridas em território nacional, e mais de dois milhões de infectados. Qual tem sido o papel do médico patologist­a no processo de combate à Covid-19?

Os patologist­as, no nosso meio, já têm dado a sua contribuiç­ão permitida, embora possam ser solicitado­s a dála muito mais. Este exercício, solicitado pelo Jornal de

Angola, é uma dessas contribuiç­ões. A Patologia é um método investigat­ivo e de monitorame­nto poderosíss­imo em toda essa problemáti­ca. No nosso país, o acento deve ser posto na elucidação ao nível popular e de concidadão­s instruídos sobre a fenomenolo­gia dessa doença, bem como impedir e simultanea­mente preparar-se para eventuais cenários piores, onde a natureza sistémica e não apenas respiratór­ia da doença deve ser levada em conta.

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VASCO GUIWHO| EDIÇÕES NOVEMBRO | LUBANGO

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