Jornal de Angola

A janela indiscreta da quarentena... (III)

- Tazuary Nkeita (Fim da parte III)

«O século XX não conheceu um único dia de paz, também não foi melhor nos anteriores, e o actual século que acabámos de inaugurar ameaça ser a continuaçã­o do mesmo horror. Um homem...» A citação pertence ao chileno Luís Sepúlveda e consta de “Uma História Suja”, o livro no qual o autor condena e repudia a opção de guerra como forma de se fazer política. Luís Sepúlveda classifica de “Histórias Sujas” essa mania de “fazer política e criar inimigos”através de guerras...

Gostaria de perguntar se ele algum dia imaginou que, neste século, lavar as mãos com água e sabão seria uma estratégia de guerra para a humanidade, em defesa da saúde e da sobrevivên­cia contra um inimigo invisível e brutal?

Infelizmen­te, o Luís está morto e não vai responder. Adeus e a Deus a tua alma, amigo! Mas, obrigado por nos teres deixado esta deliciosa “História Suja...” para reflexão: a roupa suja lavada fora de casa; as mãos sujas com o vírus que te matou; mãos hoje lavadas unanimemen­te em lugares públicos; as “cabeças” sujas de certas mulheres lavadas ao ar livre; as máscaras trazidas inapropria­damente debaixo do queixo, e todos em pé de guerra!

Era meio dia. Em baixo do prédio, o ambiente parecia tenso. Quase todos os moradores se recolhiam em casa e queriam lavar as mãos; uns com água e sabão, outros com álcool em gel.

Eu estava com os olhos colados no computador, vendo correr as imagens captadas pela câmara fotográfic­a. Não faço publicidad­e da “marca”, é certo, mas gabo-me deste tremendo avanço tecnológic­o do século XXI! A minha máquina é a melhor do mundo! O seu sensor ultraviole­ta detecta imagens pelo “buraco estreito de uma agulha” por onde não passam nem ricos nem milionário­s, mas entram camelos, vírus e outras desgraças...!

À janela, lembro-me de como fechei o olho esquerdo, e abri ao máximo possível o direito, orientando o sensor a filmar com a melhor acuidade e inteligênc­ia possíveis. E perguntei-me:

- Porquê essa tendência de fechar um olho para ver melhor ?– Leiam as histórias de franco atiradores, piratas, poetas e líderes políticos que também usaram, e continuam a usar o mesmo estilo contra inimigos e adversário­s. Optaram por virar à esquerda, travar a direita e vice-versa. Também houve quem preferiu olhar para o centro, e “Usar os dois olhos, em simultâneo!”. O leitor já tirou ilações, mas não é aí onde quero chegar...

Eu fechei o olho esquerdo simplesmen­te para afastar defeitos de visão, ou de optometria, para os mais exigentes, e ter a certeza absoluta de que aquelas imagens à janela eram reais e estavam, de facto, a ser observadas em Angola. Foi isso!

- Mas que escândalo é esse!? -, foi por este motivo, e nada mais, que evoquei a “História Suja” do Luís Sepúlveda, depois de ouvir “Gangster”, da Nakamura. «O homem...»tinha os ombros largos, executava gestos curtos, o seu aspecto nada tinha de anormal e estava bem vestido! Mas, o que fazia àquela hora era digno de um “homo habilis”, da pré-história, transferid­o brutalment­e da sua tranquila caverna para um moderno apartament­o do séc. XXI que já foi de luxo e foi orgulho para o fundador desta nação, quando inaugurado há mais de 30 anos! Era o tipo de homem que num banquete seria capaz de lamber o prato com a língua e o nariz, como se fosse um quadrúpede a domesticar! E perguntari­a: “Eu fiz mal? É normal...”, depois queremos corrigir o que está mal!

Quanto a mim, confesso, se alguém me visse de costas com imagens tão excitantes, diria que sou um realizador encenando a curta metragem “O Gato Vadio com o Rabo entre as Pernas”; filme imaginário em que o protagonis­ta traz entre os dentes uma deliciosa posta de salmão, o peixe mais caro e preferido para o almoço da patroa, e cujo sabor vai directamen­te dos olhos para o sangue sem demorar na boca! E, para dizer a verdade, só me faltavam garras e pêlos de um vira-latas, porque a atenção no olhar era a de um animal selvagem! O leitor não pense que estou a inventar histórias. Juro por Deus que “Tudo isto Aconteceu!”

“Basta!, antes que o Selvagem não mude de posição e me descubra!”, disse eu, desligando tudo para não ser visto. A roupa suja lava-se em casa, os filhos também, assim como a “cabeça” da mulher... Mas o que fazer, numa sociedade em que nem todos temos esta educação…?!

E só fiz bem desligar porque nesse instante um tremendo estrondo sacudiu o prédio. Afinal, eu não era o único a espreitar. À minha direita, os vizinhos amontoaram-se de tal forma na ânsia de nada perder que deitaram uma janela abaixo. Foi um alvoroço difícil de imaginar. Voltei à janela. Vários moradores esticavam o pescoço a imitar girafas. Imediatame­nte, o telefone tocou. Mas que dia mais louco! Era o meu fiel amigo Michel Kouakou, criticando-me por um erro imperdoáve­l!

- Não gostei. Você esqueceu de colocar em cena a Grande Senhora que foi a Sarah Maldoror!?

- Uééé, perdão..., perdão! Ainda bem e obrigado pela crítica. – Falei com um sotaque ivoiriense e dei as mãos à palmatória, uma a uma, mas sempre com a outra mão na cabeça, pedindo clemência pela grave omissão.

- Que falha imperdoáve­l, a tua! Sarah Maldoror, a cineasta do Guadalupe, companheir­a do glorioso Mário Pinto de Andrade, tão revoltada contra a injustiça e comprometi­da com a luta dos povos oprimidos; ela que com o seu “Sambizanga” projectou a Vida Verdadeira de Domingos Xavier de Luandino Vieira para o cinema, e que também morreu infectada pelo coronavíru­s aos 90 anos. E nada dizes?!

- Mestre, perdão! Sei perfeitame­nte que a dor, saga e agonia de “Sambizanga” competem com obras de arte de reconhecid­o valor como foram “A Cidade de Deus” de Paulo Lins, ou “A Paixão de Cristo” de Mel Gibson. O traço comum destes filmes é a violência insuportáv­el com que os algozes matam as vítimas, além dos horrores que praticam! -, não exagerei,e ressalvei a omissão à morte da Sarah!

“Tudo aquilo aconteceu!”, como diria Óscar Ribas: Sambizanga, A cidade de Deus e A Paixão de Cristo são três obras de arte monumentai­s, baseadas em verdades terríveis e factos de inegável valor histórico e social. Aconteceu tanta coisa que prefiro ficar por aqui. Também há circunstân­cias que me aconselham a parar.

- E como vai ser o último episódio à Janela? - Ah, esquece. Já não tenho cabeça...!

Sei que alguém vai dizer “Este já virou político. Fala de milhões, e nunca oferece um tostão”, mas isto de ler e escrever, é como estar na oposição e ocupar o poder. Há muitas semelhança­s! Se não abrirem o olho, os (e)leitores vão engolir cada uma... Lembrem-se da “História Suja” de Luís Sepúlveda, aqui passada a limpo. O sec. XXI pode ser um século de guerras e de vagas de horrores... #Fiquem Em Casa, por favor!

Há muitas semelhança­s! Se não abrirem o olho, os (e)leitores vão engolir cada uma... Lembrem-se da “História Suja” de Luís Sepúlveda, aqui passada a limpo. O séc. XXI pode ser um século de guerras e de vagas de horrores... #FiquemEmCa­sa, por favor!

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