Resgatar o resgate
Fazia algum tempo em que ninguém ouvia falar em resgate, uma operação de resgate financeiro ou até o bacoco resgate de valores. Uma das coisas assinaláveis na extensa lista de contributos da Covid-19 é a recuperação da ideia que é preciso resgatar o resgate. Falo particularmente da “Operação Resgate”.
A autoridade do Estado estava em declínio, perdeu a sua idoneidade ética e moral ao permitir que se instalasse entre nós a cultura mobutista do “debrouillezvous” (desenrasquem-se em bom português muitas vezes usado por Manuel Rui no seu sarcástico humor.… de desenrascanço).
Este “tout est permis”, que é como quem diz... tudo nos é permitido, ficou praticamente legitimado com o reconhecimento de que ninguém vive só do seu salário, há sempre uma espécie de subsídio, seja de cabritismo ou de qualquer outros ‘ismo’, que acomoda a barriga, mas que no pós-digestão nos leva valores indispensáveis como o da dignidade e da verticalidade.
Outrossim, as medidas que o Estado tem vindo a tomar revelam que, e em primeiro lugar, é possível às instituições do Estado angolano apresentarem soluções que permitam atender algumas carências básicas que não foram anteriormente supridas, e mesmo se os bairros da periferia são recentes e sem infraestruturas de saneamento urbano, ao Estado cabe assegurar, pelo menos, o abastecimento de água e energia; e que ao Estado cabe assegurar ainda o mínimo para quem não tem realmente nada, e, neste sentido, retirar os grupos mais vulneráveis das ruas, colocando-os em centros de acolhimento, é mais do que sensato. É uma manifestação de humanismo.
Os baixos níveis de instrução e a elevada precariedade que dominam a condição de vida das nossas populações - onde o comércio informal, nas praças e não só, é um dos sinais mais evidentes -, não serve para nos resignarmos a deixar pessoas a conviverem com o lixo, águas paradas e salobras e outras formas de porcaria, passe a expressão, como vínhamos assistindo um pouco por todo o País.
Se é verdade que as instituições do Estado não têm cumprido cabalmente a sua missão, e isso não passa apenas por questões financeiras, mas por perceber o seu papel e exercer as suas tarefas, temos que não é o único a falhar, digase, e sem faltar à verdade, que o terceiro sector está longe de desempenhar com razoabilidade e de forma competente a sua missão.
O que podemos nós fazer para fomentar a literacia financeira e uma cultura de empreendedorismo entre vendedores ambulantes, de mercados ou zungueiras? Que noções temos nós de nutrição e segurança alimentar, no sentido de encontrarmos receitas económicas, mas ricas em termos calóricos? Numa altura em que a Covid fez explodir no mundo inteiro o negócio das IT, por onde andamos nós? Os media, as igrejas, as organizações da sociedade civil, as associações de moradores e tantas outras organizações cívicas estão pouco criativas, e isto para não falarmos do sistema financeiro adormecido mas chorudamente lucrativo. Instalou-se, infelizmente, uma ideia de que o
Estado (o Governo) vai resolver tudo.
Sejamos claros. Não estamos a desresponsabilizar o Estado. Pelo contrário. Há domínios de onde é urgente resgatar o próprio Estado, que não consegue acabar com as crianças fora do sistema de ensino, um fenómeno bem à vista de todos, ou criar as condições para que tenhamos um sistema de ensino de qualidade, havendo mesmo a necessidade de o discutirmos profundamente, um debate vital para o futuro desta Nação. Não falo apenas da aprovação de Leis.
Um outro domínio de onde é urgente resgatar o Estado, prende-se com o sistema de saúde. Sejamos ainda mais claros.Devemos aproveitar a Covid-19, como fizeram historicamente os ingleses imediatamente a seguir à II Guerra Mundial, para pensar o futuro. Em pleno conflito, em 1942, William Beveridge apresentou na Câmara dos Comuns um relatório que alterou completamente a perspectiva social do papel do Estado. Temos muito a fazer para prevenir os efeitos devastadores desta pandemia, mas temos ainda mais a fazer, para prevenir e acautelar todas as epidemias e pandemias futuras – não nos esqueçamos por exemplo que a malária é o nosso calcanhar de Aquiles, reforçando o “nosso serviço nacional de saúde” e o nosso sistema de protecção e assistência social, com foco nos grupos mais vulneráveis.
Devemos aprender com esta crise de saúde pública mundial a gerir riscos sociais, económicos e políticos. A Ministra Silvia Lutukuta tem aqui uma soberana oportunidade de fazer história – Organizar rigorosamente o sistema nacional de saúde em Angola, tornando-o funcional e eficiente.
Por agora, entre o que temos de corrigir, estão a atitude dos pastores que desafiam o Estado e organizam cultos religiosos em pleno Estado de Emergência, para não citar aqui o caso polémico do Meritíssimo do Namibe; o estado insalubre dos nossos mercados e a ausência de feiras urbanas para a venda de produtos, criando mobilidade e ordenando o pequeno comércio; as dificuldades em interditar o uso de plásticos, que se espalham como uma praga pelas estradas nacionais interprovinciais, onde vemos mais plástico do que animais; a poluição sonora das cidades; a assustadora proliferação de cantinas de venda de bebidas alcoólicas e a ausência de bibliotecas, salas de espectáculo e outro tipo de auditórios para a cultura fazendo de nós mais apreciadores da cerveja do que um bom livro, peça de teatro, filme ou quadro; a vandalização sistemática dos bens públicos, como caminhos-de-ferro, escolas, hospitais e outros equipamentos que apresentam níveis de degradação chocantes, como é o caso, por exemplo, da escola Nzinga Mbandi, mesmo no centro de Luanda; a ausência de gestão adequada de condomínios ou de comissões de moradores capazes de contribuir para a resolução dos seus próprios problemas comunitários mais básicos porque ninguém quer contribuir e todos querem criticar.
Enfim, numa lista sem fim para chegarmos a uma só conclusão: estamos todos, individual e colectivamente, na emergência de resgatar o resgate. Pela nossa sobrevivência.
Os baixos níveis de instrução e a elevada precariedade que dominam a condição de vida das nossas populações - onde o comércio informal, nas praças e não só, é um dos sinais mais evidentes -, não serve para nos resignarmos a deixar pessoas a conviverem com o lixo, águas paradas e salobras e outras formas de porcaria, passe a expressão, como vínhamos assistindo um pouco por todo o País