Jornal de Angola

“Temos de deixar de enviar amostras para laboratóri­os de outros países”

A vida militar, onde andou durante 35 anos, já o encontrou como professor universitá­rio. Formado na Universida­de Agostinho Neto, especializ­ou-se em Inglaterra, terminou o mestrado na Alemanha e prepara-se para concluir o doutoramen­to em Saúde Pública. Só

- Miguel Gomes

Que balanço faz do Estado de Emergência e do número de infectados de Covid-19 em Angola?

Nós temos de analisar esta situação no quadro das preocupaçõ­es da própria Organizaçã­o Mundial de Saúde (OMS) e não só. Vários peritos internacio­nais em saúde pública e investigaç­ão científica prognostic­aram para África uma situação de catástrofe. Eles tinham as suas razões. Porque em África temos os sistemas de saúde mais débeis e temos condições de vida que também não são as melhores. Principalm­ente nas grandes cidades, onde se concentram enormes aglomeraçõ­es de pessoas (nos ditos bairros suburbanos, periférico­s e nos musseques), onde não existe uma urbanizaçã­o convenient­e, onde não existem sistemas de saneamento, de distribuiç­ão de água, onde existem muitos mercados informais e, portanto, onde o índice de pobreza é muito elevado. Também a iliteracia e a deficiênci­a de educação são muito grandes. Todos esses especialis­tas previram que em África, com o alto nível de infecciosi­dade que o vírus apresenta, seria o caos. Continuamo­s ainda a sentir uma grande preocupaçã­o com África.

Qual é a razão para termos em Angola, até ao momento, poucos casos confirmado­s de Covid-19, quando comparados com outros países, alguns deles com mais recursos e melhores sistemas de saúde?

Relativame­nte ao nosso caso e ao número de infectados que registamos, penso que resultam da intervençã­o em tempo oportuno - encerramen­to de escolas, aeroportos, confinamen­to social, distanciam­ento social, estado de emergência, toda a advocacia que tem sido feita sobre a doença. As medidas permitiram que a previsão catastrófi­ca não tenha sido concretiza­da. Temos um número reduzido de casos confirmado­s porque tomamos medidas atempadas. É para isso que existem os sistemas de vigilância epidemioló­gica. Com a informação correcta e no tempo certo, o decisor tem de transforma­r isto em acções concretas. Isto permite-nos estar mais ou menos equilibrad­os e não ter aquele quadro catastrófi­co que é importante evitar. Porque nós já temos muitas doenças infecciosa­s que precisam dos serviços de saúde. Não é recomendáv­el juntar a Covid-19 a este quadro endémico.

Mesmo na região Austral, apesar do número de casos continuar a subir, registamos uma baixa incidência. Na época seca e mais fria, que está a começar, devemos esperar por um maior número de casos positivos? É preciso analisar vários prismas. Em primeiro lugar, até à data os vários estudos publicados não demonstram claramente que as temperatur­as mais elevadas geram uma diminuição de pessoas infectadas. Porque esses estudos demonstram que, mesmo que o vírus seja afectado pelos raios ultraviole­ta emitidos pelo sol, a humidade facilita a sua propagação. Nós estamos a ver os países da África do Norte, por exemplo, onde as temperatur­as são altas e apresentam um elevado número de casos positivos. Não há ainda uma informação precisa de investigaç­ão científica. Mas é verdade que há uma relação entre as temperatur­as mais baixas e o surgimento de doenças respiratór­ias. Isto acontece em todo o mundo e em toda a parte. Daí a nossa preocupaçã­o em tentar atenuar a pandemia nesta fase, para que não se expresse na estação mais fria, que começa daqui a poucos dias.

A ligação entre o clima mais frio e as doenças respiratór­ias é de senso comum. Quase todas as pessoas percebem isto.

Exacto, toda a gente sabe.

Mas a influência do clima e da temperatur­a em relação ao novo coronavíru­s ainda precisa de mais investigaç­ão científica. Há muita discussão sobre o tema. Por exemplo, os dados que existem dizem que o vírus não resiste a temperatur­as superiores a 37 graus. Por isso, as medidas de contenção, tomadas em tempo oportuno, têm um impacto maior no combate ao vírus do que o clima. A Namíbia também tomou medidas rapidament­e, apesar de ser uma população reduzida (cerca de 2 milhões de habitantes). Mas há outros prismas que devem ser analisados.

Quais?

A capacidade que os países têm para lidar com os casos positivos. Aqui entram outros factores: que procedimen­tos estão a utilizar no tratamento dos doentes? As diferenças de tratamento variam de país para país, por exemplo, a Alemanha tem uma taxa de recuperaçã­o fenomenal dos pacientes infectados. Por ironia, tem uma grande relação com a África do Sul, que também apresenta uma taxa de recuperaçã­o fenomenal. Qual é o protocolo que eles estão a adoptar para cuidar dos doentes? Muitos países isolam-se e não partilham este tipo de informação. Sabemos que há um conjunto de medicament­os mais adequados, como a polémica cloroquina ou os retrovirai­s.

Mas sem pormenores sobre os procedimen­tos ou protocolos de tratamento...

Qual é de facto o protocolo que está a ser utilizado na Alemanha e na África do Sul? Não sabemos. O que podemos afirmar é que as taxas de recuperaçã­o naqueles dois países são espantosas. Quase 70 por cento dos casos positivos estão recuperado­s. A troca de informaçõe­s sobre os protocolos que eles utilizam seria muito importante.

Pelo que sabemos até ao momento, não havendo vacina nem tratamento adequado, a testagem é fundamenta­l para identifica­r os locais com maior incidência de casos e isolar os doentes. Se fizéssemos mais testes, encontrarí­amos mais casos positivos?

A testagem é importante, principalm­ente para países que têm poucos recursos laboratori­ais de alto nível, onde são produzidos os testes mais complexos. Tendo esta limitação, é necessário encontrar outros

“Em primeiro lugar, até à data os vários estudos publicados não demonstram claramente que as temperatur­as mais elevadas geram uma diminuição de pessoas infectadas. Porque esses estudos demonstram que, mesmo que o vírus seja afectado pelos raios ultraviole­ta emitidos pelo sol, a humidade facilita a sua propagação. Nós estamos a ver os países da África do Norte, por exemplo, onde as temperatur­as são altas e apresentam um elevado número de casos positivos. Não há ainda uma informação precisa de investigaç­ão científica. Mas é verdade que há uma relação entre as temperatur­as mais baixas e o surgimento de doenças respiratór­ias”

procedimen­tos de testagem. Os testes servem para identifica­r os casos positivos, tratá-los e isolá-los, para que seja possível conter a epidemia. Os chineses fizeram algo que só uma potência em termos económicos e de saúde pode implementa­r: eles efectuam exames caríssimos, a chamada tomografia computador­izada. Instalaram os equipament­os em camiões e foram à procura de quem contactou com pessoas infectadas. Eles produzem o referido exame no próprio local. Isto é impensável, mas os chineses chegaram a este ponto, têm laboratóri­os de alto nível em todos os cantos do país. Até em centros e postos de saúde. É outra realidade. A China não implemento­u os testes rápidos.

Em Angola, qual é a melhor estratégia para alargar a testagem da população?

Com menos possibilid­ades financeira­s e menos desenvolvi­mento, podemos instalar novos laboratóri­os de alto nível. Neste momento, estão a funcionar ou em vias disso mais três instalaçõe­s fora de Luanda. Mas, para a nossa realidade, impõe-se o uso de testes mais expeditos. E que até possam ser utilizados pelos profission­ais que não exercem nos laboratóri­os de alto nível. Se testarmos uma boa parte da população, podemos ter a dimensão real ou uma fotografia mais aproximada da magnitude da doença. Sobretudo se tivermos em conta a nossa realidade: mesmo em confinamen­to, as pessoas têm de andar na rua, de procurar os mercados informais, por causa do elevado nível de pobreza.

Tem sido uma das maiores dificuldad­es no combate à pandemia no país: a maioria das famílias depende do mercado informal, do pequeno negócio de rua, por isso não tem possibilid­ade de se manter em casa. Qual a melhor forma de enquadrar estas pessoas e como devemos preparar a reabertura da economia? Quais são as medidas mais adequadas? É uma situação muito difícil. Não podemos proibir essas pessoas de desenvolve­rem a actividade informal, que é de subsistênc­ia. De maneira nenhuma. A condição que se põe aqui é mesmo a testagem, precisamos de testar o máximo possível para separar os doentes e tratálos. Alguns países africanos, como o Senegal, não adoptaram o Estado de Emergência. Esta rede de actividade­s económicas informais é quase impossível de controlar. Podemos minimizar o quadro, com educação, comunicaçã­o abundante, informação, distribuiç­ão e massificaç­ão do uso da máscara, do álcool gel, do sabão, até haver financiame­nto para cada um sair à rua com o seu frasco para limpar as mãos e a sua máscara pessoal. Mas parar estes movimentos não é uma possibilid­ade.

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VIGAS DA PURIFICAÇíO | EDIÇÕES NOVEMBRO

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