Os vírus do quarto *
O nosso augusto presidente, que andava à caça de marimbondos desde que se transformara em inquilino do Palácio da Cidade Alta, forçado a cambiar o caminho da sua luta, decretou, pela primeira vez na história da nossa Angola democrática, o Estado de Emergência. Havia um novo inimigo a combater: chama-se coronavírus, é invisível, é altamente letal e, segundo os especialistas, é muito inteligente
Chegada aos meus
ouvidos a voz decretadora do augusto presidente, de súbito, pensei: este vírus é invisível, mas suas mãos são de uma forteza imensurável. Vão deixar ao céu toda a miséria que anda embarrada na nossa terra. Twadiwana!
Na manhã do dia da entrada em vigor do decreto, sexta-feira, saí para compra de vitualhas para casa, pois o meu casaca só disponibilizara o mísero estipêndio na tarde do dia anterior. Mas o decreto também permitia saídas afins e para questões de extrema necessidade. Nessa manhã, fiz-me surpreso ao ver as ruas enxameadas de gente, até de crianças. Nada justificava a presença delas na rua.
Já acuado no cubículo há dois dias, pelo rádio, de um especialista em saúde ouço que o coronavírus, que surgira na China como epidemia, mas rapidamente a OMS promovera-o à pandemia e mudara o seu nome para Covid-19, era mais letal para os idosos e os que já padecessem de alguma enfermidade. Então, lembreime do achaque que há muito me persegue.
Sem delongar, no ouvido, troquei a voz do rádio pela da tia Isabel, a senhora que vende produtos da Forever. Procurei-a porque o especialista em saúde dissera que o suco de aloé-vera ajuda copiosamente a reforçar o sistema imunológico. A voz da tia Isabel, qual recordista, num ápice, deixou-me de queixo caído, com grande espanto preso no rosto. O preço do suco teve uma subida de mais de 200%. Katé ngaxala. Ó dizwi wangilenga…
Pedi outro produto. A entrega fora acertada para depois de dois dias. Sumida a voz da tia Isabel, lembreime de que situação igual, de especulação, também se registara no mercado. As vendedeiras decidiram dikombar com a demanda que acorria aos mercados. O limão atingira preços nunca antes vistos. Parecia era o substituto do petróleo que estava a rastejar devido ao coronavírus. Diante daquela situação, questionei aos meus botões: como é que estas pessoas não conseguem largar a cupidez neste momento de grande incerteza, que devia ser de solidariedade? Ngongo wabiluka mwene. Ó henda wafu kya. Tusambenu!
Na manhã do dia acordado para a entrega do produto, a voz da tia Isabel cortou o paleio que mantinha com Pepetela, que, por meio do seu “Yaka”, era a minha companhia para este período de quarentena resultante do Estado de Emergência.
Já ao volante do meu “cabebeu”, na rua, a minha cabeça não tardou a estar à roda. Um grupo de jovens fazia trabalhos de pedicure e manicure na maior normalmente. Quer eles, quer as clientes, não usavam máscaras. Como pode alguém se preocupar com a beleza numa fase destas? Mesmo estando proibidos os eventos sociais?
Adiante, encontrei cinco jovens sentados debaixo de um alpendre. Indaguei-os se não sabiam que estavam proibidos de estar sentados na rua, principalmente tão abeirados uns dos outros como estavam. A resposta deles apressou o movimento das quatro rodas do “cabebeu”. “Não somos assalariados. Dependemos de biscatos. Estamos à espera que venha alguém chamar-nos para biscatarmos e, assim, conseguirmos meter alguma comida em casa”. Saí com a cara virada para o outro lado.
Na zona da Teixeira, parei: uma turba de vendedeiras algazarrava a área com corridas de um lado para outro. Três polícias suados, em vão, tentavam dispersá-las. Porretavam-nas, mas estas não fugiam distante. Tristonho, avancei. À minha mente veio uma reportagem que lera no Jornal de Angola, feita por altura de uma manifestação convocada para repudiar a implementação do IVA, porque, segundo os promotores, no país, havia muita pobreza, logo era um absurdo se implementar aquele imposto na percentagem de 17%.
Nessa reportagem, todos os entrevistados diziam que não participaram daquela manifestação para ir trabalhar porque têm filhos para sustentar. Infelizmente, quem governa esfregou as mãos e sorriu de lado. Não foi capaz de ler os sinais de perigo que vinham daquelas respostas. É deveras perigoso quando as pessoas só trabalham para comer. E, agora, o dikulo chegou. Se não vendem, não comem...
O rádio, que passara a ser a minha companhia, trouxe-me a bizarra notícia que dava conta que no Mali, onde se realizara eleições nesse dia, o principal político da oposição estava sumido. Fora raptado por elementos desconhecidos. Sorri a bom sorrir. O mundo todo está unido nesta guerra contra o coronavírus, mas estes políticos continuam com estas vilezas? — indagueime em pensamento.
Mal unira os lábios, nova notícia estapafúrdia levaraos a separem-se num riso sonoro: a notícia era sobre a queixa que o antigo treinador da Selecção Angolana de Basquetebol, o norteamericano William Voigt, havia apresentado no Tribunal Arbitral de Desporto por falta de pagamento dos seus salários. “Mas então como é que o Maneda, expresidente da federação, se dera a tal veneta, de ir contratar um técnico americano quando estava com os bolsos rotos?”.
Alcançada a tia Isabel, paguei e recebi o produto. Fui parco nas palavras porque queria logo voltar ao meu “aquartelamento”. De regresso, o rádio passava músicas animadas.
Na zona da Teixeira, o “vaidaí-vem daqui” entre as vendedeiras e os polícias continuava. Já não parei. À entrada da minha rua, nova amofinação nasceu em mim: uma leva de jovens estava reunida numa roda de cervejas. Os convivas gargalhavam à vontade. Totalmente alheios ao Estado de Emergência e ao vírus que deixava o mundo sem norte. Quanta ignorância!
“Estes são como aqueles jovens da Rua da Dira, a mais movimentada do Zango3, que, em entrevista, disseram não saber a origem do feriado do dia 4 de Fevereiro. Contudo, jubilosos, agradeciam o Governo por o ter criado porque os permitia estar em grandes beberetes”. — pensei.
Em casa, voltei à conversa com o Pepetela. Ia longo e animado o cavaco, quando o som que anunciava a chegada de uma mensagem ao meu telefone tirou-me a atenção. Aberta, quase caí de espanto. O Tesouro Nacional pedia-me apoio financeiro de, no mínimo, 500kz para ajudar o Governo na compita contra o assassino invisível. Mas como pode pedir ajuda a um dibinzado como eu?! Assim também enviou esta mensagem àqueles jovens biscateiros que estavam sentados debaixo do alpendre. Eles jindakaram mal o Governo. Meter a mão no bolso roto do povo!? Eh!... ó iyi isunji pé!
De viseira caída, fechei a boca do Pepetela. Senteime à mesa para jantar. Findo, recorri ao rádio para acompanhar a situação da COVID - 19, este vírus que veio lembrar-nos que somos todos meros mortais. Quando pensava que mais nada me levaria a rir nesse dia, eis que surge nova notícia hilariante: um comunicado do Estado Maior das FAA informava que, em Cabinda, militares foram detidos por se terem apropriado de haveres de uma mulher na via pública, quando mantinham a ordem no âmbito da quarentena.
— Neste quarto dia do Estado de Emergência, descobri que teremos muitos vírus a combater depois de nos livrarmos do coronavírus, este colosso que conseguiu destapar toda a podridão que fingíamos não ver. — disse a sorrir e, a seguir, fui dormir.