Porque falham as Nações Unidas
Dois meses de negociações sem resolução, que acentuaram o diferendo entre os Estados Unidos e a China, revelaram a disfuncionalidade do Conselho de Segurança para chegar a acordo sobre questões essenciais da actualidade
de Segurança das Nações Unidas passou os últimos dois meses a negociar na tentativa de encontrar uma resolução conjunta para enfrentar, em questões de segurança, a pandemia de Covid-19, e não foi capaz, sequer, de produzir um texto final. Dito de outro modo, o Conselho de Segurança, chamado a dar um contributo, tido como decisivo, para fazer face a um crescendo de instabilidade internacional – e isto a par do apelo do secretário-geral António Guterres para um cessar-fogo global durante a pandemia – falhou.
E falhou porque os Estados Unidos, membro permanente, vetou a resolução que os outros 14 Estados-membros - cinco permanentes (Estados Unidos, França, Reino Unido, Rússia e China) e 10 não-permanentes, eleitos pela Assembleia-Geral da ONU por um período de dois anos - acordaram.
A resolução a que os Estados Unidos se opuseram, numa primeira vez, foi de iniciativa conjunta da França e da Tunísia. Uma proposta muito concreta para mitigar o sofrimento que decorre da pandemia de Covid-19, e que afirmava o apelo que o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, fez, a 23 de Março, de um cessar-fogo global de forma a garantir que equipas humanitárias e os especialistas de saúde possam ajudar as comunidades envolvidas em conflitos e afectadas pelo novo coronavírus - uma pausa humanitária de 90 dias de todos os conflitos armados no mundo, em especial no Sudão do Sul e na Líbia.
A tensão entre a China e os Estados Unidos sobre o papel da Organização Mundial de Saúde (OMS) travou quaisquer possibilidades. Da resolução devia constar uma nota dando como positiva a actuação da OMS na gestão da pandemia, o que os Estados Unidos recusam veementemente. Não por acaso, os analistas debruçam-se agora sobre a crescente disfunção do Conselho de Segurança, visível faz tempo, também devido aos desacordos anteriores em questões relacionadas com a Líbia ou a Síria.
Quando a França apresentou, logo em Março, uma primeira proposta de resolução sobre as respostas à pandemia da Covid-19 aos outros quatro membros do conselho permanente, os diplomatas norte-americanos fizeram questão que o texto tivesse uma referência à origem do vírus, no caso, aWuhan, na China, e, dessa forma, o designasse como "vírus da China". A esta imposição os chineses disseram, naturalmente, não. No impasse, os dez países do conselho nãopermanente, onde se incluem a África do Sul, Alemanha e Tunísia, começaram a elaborar um outro projecto de resolução - não isento de divergências, bem entendido.
A Tunísia apresentou uma proposta elogiando a acção da OMS e discutindo os efeitos socioeconómicos da pandemia, proposta não totalmente bem acolhida por outros membros, justificando que se abordavam temas fora do alcance do Conselho de Segurança. Em concreto, a África do Sul contestou o direito daquele órgão poder interferir em questões directamente relacionadas com a saúde. Quanto às questões relacionadas com o cessarfogo global, também aí houve acrimoniosa divergência, com os Estados Unidos e a Rússia a insistirem que tal situação teria de incluir uma participação significativa das suas operações de contra-terrorismo, proposta que não reuniu o acordo de mais ninguém.
A França juntou-se à Tunísia
em meados de Abril e elaboraram uma nova proposta. Para obterem um maior consenso, retiraram do texto assuntos mais sensíveis, como alívio de sanções ou questões relacionadas com os direitos humanos. O documento rodou, discretamente, pelos corredores da sede das Nações Unidas em Nova Iorque, entre diplomatas e funcionários.
Mas a proposta caiu na reunião do Conselho de Segurança. Os Estados Unidos insistiram que o texto incluísse a maneira pouco transparente como a China lidou com a Covid-19 desde o início do surto. E os representantes de Washington também se recusaram a aceitar qualquer referência elogiosa à OMS - e isto depois do Presidente norteamericano ter anunciado a suspensão do financiamento à agência global de saúde das Nações Unidas. Os chineses reagiram a uma coisa e à outra, opondo-se.
As negociações prosseguiram, chegou a vez da Alemanha e da Estónia tentarem um texto quase minimalista no que tinha a ver com a OMS, ou seja, deixando quaisquer referência específica à agência das Nações Unidas de fora, e concentrando-se na trégua de 90 dias nos conflitos à escala global, porque, como disse a embaixadora dos Estados Unidos nas Nações Unidas, Kelly Craft, “tudo o que queremos é ver uma resolução que declare o cessarfogo”. Mudando o tom e a linguagem, com os chineses a fazerem algumas cedências, chega-se a um texto final que Washington não aceitou, no último minuto. Mike Pompeo não o permitiu.
Os Estados Unidos querem que a China tenha muitas culpas no cartório. A China quer isolar os Estados Unidos. Os restantes membros consideram que a recusa de última hora dos norte-americanos foi, no mínimo, mesquinha, uma vez que quase todas as suas pretensões foram aceites.
A diplomacia ficou ainda mais tóxica nos corredores do edifício sede das Nações Unidas. Enquanto isto, os grupos armados ao redor do mundo, da Colômbia às Filipinas, e que ainda ponderaram um cessar-fogo, dão o dito por não dito e voltam a fazer aquilo para que foram criados: a alimentar conflitos enquanto milhares de refugiados morrem à fome e agora em consequência da pandemia. Ao mesmo tempo, o Conselho de Segurança deixa o secretário-geral António Guterres a falar sozinho.
E se o órgão mais poderoso da ONU não é capaz de consertar posições para um pedido directo à paz e a estabilidade global num tempo de incerteza e pandemia, o que pensar do Conselho de Segurança - em concreto, das grandes potências - para enfrentar futuras crises?
A resolução a que os Estados Unidos se opuseram, numa primeira vez, foi de iniciativa conjunta da França e da Tunísia. Uma proposta muito concreta para mitigar o sofrimento que decorre da pandemia de Covid-19