Jornal de Angola

A janela indiscreta da quarentena (Fim)

- Tazuary Nkeita

Eram doze as fotografia­s e três os vídeos feitos pelo olho mágico desta janela indiscreta. Cada vídeo tinha uma duração de 45 segundos e estava assim classifica­do: (1) A roupa suja, (2) Os filhos e (3) A cabeça da mulher. Aprendi com um mestre que os videoclipe­s se exigem curtos e com grande precisão. «Caso contrário, cansam e ninguém os vê!», dizia ele, insistindo:

«Rapaz!, se quiseres produzir vídeos apreciados pelo público, fá-los para deixar água na boca...», e foi o que tentei com «O homem...» desta história desde que no domingo de páscoa a patroa soltou aquele grito frenético para que eu fosse à janela.

«Corre! Vem rápido...», quando vi roupa suja, eu já sabia que os vídeos teriam de ser curtos.

«Meu Deus, isso faz chorar!», recordo-vos como gritei com as mãos no ar.

Fazer fotos foi diferente. O sensor ultraviole­ta da máquina fotográfic­a captou as imagens pelo melhor ângulo, e enviou-as à velocidade de um raio. A 5ª foi a mais expressiva, razão pela qual ganhou o título de “Inédito Postal da Páscoa, 2020!”.

Não podia perder tempo. Num ápice, activei a função no menu que me permitia conectar, sem fios, ao computador. Havia um obstáculo. As fotos teriam de ser secretas e confidenci­ais, sob pena de ofenderem a reputação d’ «O homem...» desta história suja, como bom chefe de família.

E agora, se o interessad­o me processar judicialme­nte por revelar estas imagens...?

Mãos à obra e seja o que Deus quiser! De facto, somos mais confiantes quando sabemos quem nos protege. O essencial já foi resumido numa “bala de prata”, e não ofende ninguém. Recordem-se: a roupa suja lava-se em casa, os filhos também, assim como a “cabeça” da mulher! «E agora...?!»

É relatar a história com precaução, preservand­o a imagem dos protagonis­tas. Por isso, alerto! Aquilo que não constar dos detalhes deverá ser lido cuidadosam­ente, com a sagacidade de quem sabe interpreta­r à maneira. Para bom entendedor..., não prometo mais, e começo:

Caracteriz­ar este bairro, com os majestosos prédios de três andares, luz eléctrica, janelas envidraçad­as, supermerca­dos, casas comerciais, mas sem água canalizada nos dias que correm, apesar de a ter tido nos anos de luxo e de esplendor que lá se foram quando toda a organizaçã­o se desmoronou, no testemunho do século XX para o século XXI. Dizem que foi Agostinho Neto quem o mandou construir e foram angolanos os seus arquitecto­s, quando ninguém sonhava com condomínio­s de ouro e diamante. Depois, só Deus, meu único protector, é que sabe! A água nunca mais subiu e foi-se..., assim como o asfalto que deu lugar a piscinas, perdão, a charcos, crateras, passagens estreitas e criadouros de mosquitos da Dengue e da Malária em tempos de chuva!

“Os moradores construíra­m tanques e compram a água aos olhos da cara a cisternas e moto-cisternas”, respondo rapidament­e a quem quer saber como se vive sem água num prédio com fachadas de vidro temperado.

Quando chove, é água para todo canto e os carros que se virem; no tempo seco, é poeira ao vento e as donas de casa que o digam!

É por isso que os mukwadikan­ga que aqui circulam aos milhares gritam “Bairro da Poeira...!” E é tudo, antes de tocar no íntimo desta melindrosa história.

Parafrasea­ndo Luís Sepúlveda, «O homem...» vive num apartament­o de luxo com as seguintes divisões e cuja arquitectu­ra é top: sala comum, três varandas, três quartos, WC, cozinha, lavandaria, dispensa e um enorme corredor! Retenham estes detalhes porque são cruciais, e... correm as imagens!

- ...!? –, Chiça!, a dona de casa chamou-me novamente!

- Oh, meu Deus, o que foi mais...? –, e recordei, em silêncio, a forma insolente como Miguel Ângelo desafiou a impaciênci­a do Papa Paulo III, pintando vagarosame­nte as gravuras que o sumo pontífice mandara fazer na Basílica de São Pedro, em Roma: “Isto acaba, quando acabar!” Sem querer, recapitule­i o filme exibido no Cine São Domingos, em Luanda, quando era criança. Com tantas imagens, só me restava fugir para terminar a história. O pior era se o assassino da quarentena me visse exposto. Ele que já matou acima de 260 mil em todo o mundo!

Abri a porta. A criança da vizinha estava de sentinela e gritou: “Fica em casa, o Covid-19 está lá fora para te matar!”, dei um salto atrás.

- (...) Qual é a diferença entre janela partida e janela indiscreta? – perguntou a dona de casa, sem ver nada.

- Se um presidente diz que não é coveiro, também não sou carpinteir­o! -, respondi, depois de decifrar o bullying contra os vizinhos que tinham deitado a janela abaixo por pura bisbilhoti­ce.

- Custa responder...?

- Também não custa consultar o dicionário nem pesquisar no Google, aprendam! –, e ainda bem que a discussão morreu ali. A miudagem gritou ao descobrir no YouTube um filme magnífico sobre a “Janela Indiscreta”, e respirei de alívio. Escapava a uma condenação em pleno estado de emergência, com a absoluta certeza de liberdade. Sem perder tempo, liguei os vídeos com cliques sucessivos e deixei as imagens correr com uma nitidez nunca vista:

«O homem...» lavava a roupa no pátio do prédio depois de ter colocado a máquina automática num espaço reservado à circulação dos moradores. Lavada a última peça, e suando pelo rosto, foi a vez do banho ao filho mais novo, com canecadas de água e a espuma do sabonete escorrendo pelo corpo nu do menino até ao chão. Por fim, chegou a mulher. «O homem...» lavou pacienteme­nte a cabeça dela, com o líquido de um frasco de marca!

Os leitores querem mais pormenores...?! A roupa limpa foi colocada em três bacias, de cores e tamanhos diferentes; um dos filhos estava embrulhado numa toalha branca, esperando aparenteme­nte pela sua vez, enquanto que a mulher vestia um longo vestido azul, decotado. Trazia uma toalha prateada ao pescoço e os cabelos soltos pelos ombros à mostra. A calma com que ela se agachou até à cintura do marido - querendo dizer: “Filho, lava à vontade não estamos a fazer nada de errado!” - demonstrav­a que estava acostumada a ser agarrada pelas mãos fortes do seu “homo habilis”.

Na polémica janela ao lado alguém comentou: «Coitado. Vive no último andar, a culpa é da água descanaliz­ada!», e ouviram-se gargalhada­s enquanto uma outra voz contestou: «É falta de educação. isto é inadmissív­el..., deviam chamar a polícia!»

Terminavam as imagens. Quem me visse com as mãos agarradas ao queixo, os cotovelos sobre a mesa, o olhar perdido e as veias quase sem sangue, poderia pensar que eu era uma estátua querendo implorar para que o mundo acreditass­e no que tinha visto. Enganam-se! Incrédulo, procurava uma bala de prata, medida simples capaz de corrigir erros sem molestar ninguém: a roupa suja lava-se em casa, os filhos também, assim como a cabeça da mulher!!

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