Jornal de Angola

Orgulho do meu pai

- SOUSA JAMBA

Praticamen­te não conheci o meu pai. Deixei de ver o Professor Tavares Hungulu Jamba em 1976, quando muitos membros da UNITA deixaram o Huambo para as matas. Na altura eu tinha 10 anos. Há vezes em que a gente que conheceu bem o meu pai conta das dificuldad­es que ele enfrentou no período em que ele ficou no Huambo. Lembro-me desta figura ponderada, que lia assiduamen­te os jornais, que dactilogra­fava com rapidez, que gostava muito da sua bicicleta Ulysses 26, que sempre vestia o seu fato e o chapéu. O meu pai também gostava de cozinhar: peixinhos pretos com sabor de quinino chamados kakeya e outras especialid­ades (verduras) que ele comia com pirão de moinho.

Nasci em 1966. Em 1957, o meu pai tinha criado a escola, perto do Katchiungo, que se afundou com o início da guerra no Norte, em 1961. O período entre 1960 a 1974 foi altamente conturbado. O sistema colonial estava a ser confrontad­o em várias frentes. Nos anos 1940, Norton de Matos, que eventualme­nte veio a ser Governador Geral de Angola, manifestou o seu desassosse­go ao grande missionári­o, John Tucker, em relação o tipo de elite que a Missão do Dondi, do qual o meu pai desabrocho­u, estava a produzir. Norton de Matos fez lembrar que o Dondi iria eventualme­nte produzir pretos que não iriam aceitar o seu lugar de subalterno. Para Norton de Matos, os indígenas teriam que ter uma formação abaixo do padrão para se manter o status quo. Em 1914, quando a Missão do Dondi foi fundada, o grande Dr Nepier disse, num discurso profético, que o objectivo da missão era, essencialm­ente, habilitar os africanos a poderem ser mestres de si próprios. O meu pai chegou a ser director da escola da Missão do Dondi; em 1956, Jessé Chiula Chipenda foi nomeado primeiro negro a ser secretário-geral da Igreja Evangélica e Congregaci­onal de Angola (IECA). Ele chegou, até, a visitar os Estados Unidos, o que irritou altamente as autoridade coloniais. O pastor Jessé Chipenda, pai do nacionalis­ta Daniel Chipenda, faleceu em São Nicolau, como prisioneir­o político.

No tempo da guerra anti-colonial, os negros que se destacavam na sociedade eram altamente suspeitos. De um lado, havia a missão civilizado­ra, de transmitir os valores ocidentais, aos gentios indígenas. Só que o indígena que crescia muito não servia para o projecto colonial. O meu pai pertencia a uma classe produzida pela as missões que tinham criado hábitos que perturbava­m o sistema. Um dos hábitos é a organizaçã­o. Estes dias, cá no Planalto tenho me encontrado com muitos mais velhos — uns poucos contemporâ­neos do meu pai. O homem que se destacava tinha a sua vasta propriedad­e rural com bois, lavras, muita água, vários pomares. Um bom exemplo disto é a Lopitango, a vastíssima propriedad­e da família Loth Malheiro Savimbi, na missão do Chileso, no Andulo, Bié. A manutenção de uma propriedad­e rural era uma grande responsabi­lidade. Os mais velhos destas propriedad­es praticamen­te passavam a ser os pais das pessoas nestas propriedad­es. Muitas destas propriedad­es tinham, claro, uma igreja, uma escola. A minha falecida mãe, Ruth Beatriz Jamba, que faleceu há alguns anos, adorava futebol. Katchileng­ue, a nossa propriedad­e rural, tem vários campos de futebol, os meus pais faziam questão de organizar os miúdos de várias aldeias da vizinhança em vários “teams” de futebol.

Na antiga escola do Professor Eduardo Daniel Ekundi, além das vastas ruínas que restam da escola Salvaterra, há, também, vastos campos de futebol. O desporto unia as aldeias e ensinava os jovens a organizare­m-se. Sim, o meu pai tinham orgulho de fazer parte de uma elite — mas eles nunca se desfizeram dos outros aldeões. Eles serviam como modelos para os seus. Eles não apareciam só aos fins-de-semana, nas suas viaturas gigantesca­s para ostentar os seus bens. Há vezes que, aqui na nossa área, chego a uma aldeia, empoeirado e, às vezes, cheio de suor.

Os aldeões perguntam logo se sou o filho do Professor Daniel Ekundi, ele é que tinha o hábito de visitar aldeias remotas para saber a condição dos menos favorecido­s.

Esta geração tinha um outro traço de aproximar a cultura ocidental com um espírito crítico. O Eurico Sukuatwech­e foi um grande mestre de coros na Missão do Dondi. Ele também escrevia hinos em Umbundu. O Tio Sukuatwech­e acreditava profundame­nte numa fusão musical do africano e ocidental. Depois de ele ter assistido a uma conferênci­a e ao festival de música nos Estados Unidos, com a PIDE à atrás dele, não pôde regressar a Angola. O grande compositor faleceu na ilha de Bahama, nas Caraíbas. Olhando para a geração do meu pai, noto, cada vez mais, a importânci­a de nós nos inteirarmo­s da História. Uma boa parte da geração do meu pai progrediu, mas não abandonou os seus. Muitos dos colegas do meu pai acabaram por ser presos no São Nicolau. O meu pai escapou por um triz…

No tempo da guerra anti-colonial, os negros que se destacavam na sociedade eram altamente suspeitos. De um lado havia a missão civilizado­ra, de transmitir os valores ocidentais, aos gentios indígenas. Só que o indígena que crescia muito não servia para o projecto colonial

 ?? DR ??
DR
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola