Jornal de Angola

“Sacudir” os sapatos para afastar a Covid-19

- António Félix

Uma das recomendaç­ões das entidades sanitárias nacionais e, inclusive, da Organizaçã­o Mundial da Saúde (OMS) prendese com a particular atenção que se deve dar e ter com a higienizaç­ão dos sapatos, por estar provado que, à falta de um eficiente controlo na utilização e preparação diária dos mesmos, podem ser fontes de contágio do novo coronavíru­s.

À saída e à chegada de casa devem ser lavados de modo que os engraxador­es, no contacto com os clientes, são, particular­mente, chamados a usar máscaras, luvas e álcool-gel, o que muitas vezes não acontece. Os que assim não cumprem ficam expostos a perigos de contracção do vírus, estendendo este melindre, também, aos clientes e vice-versa.

Por esta razão, o Jornal de

Angola saiu à rua e constatou que, entre alguns desses profission­ais, há os que seguem à risca as recomendaç­ões de protecção e outros ainda alheios.

Hilário Matuva, 19 anos, sapateiro, exerce o ofício próximo à sede do Banco de Fomento Angola, na Maianga. Bieno, residente em Luanda há sete anos, onde chegou à procura de melhores condições de vida, não subestima as orientaçõe­s das autoridade­s sanitárias.

“Vivo no Morro Bento e todas as manhãs chego aqui cedo, cumpro todos os cuidados recomendad­os. Faço isso já a partir dos táxis que apanho. Para vir aqui, não subo no táxi sem colocar máscara para proteger a boca e o nariz. E quando aqui chego, não aceito dar brilho aos sapatos dos clientes sem que falem comigo também protegidos”, conta

“As pessoas que procuram os meus serviços sem correspond­er às minhas exigências, não atendo, não engraxo os sapatos. Uns compreende­m e vão-se embora, outros teimam, mas não aceito mesmo”, disse.

Não muito longe de Hilário, defronte à dependênci­a do Banco de Comércio e Indústria (BCI), na Maianga, está permanente­mente uma fileira de engraxador­es em que perfila Hélder António, 26 anos. “Diariament­e, nos bons dias, chego a engraxar os sapatos de vinte e cinco a trinta clientes. Agora diminuiu um pouco, porque as pessoas estão a andar pouco devido à doença”, respondeu quando indagado sobre o número de pessoas que assentam os pés sobre a “caixa do seu sustento".

Conta que apenas desce à Baixa porque tem de lutar pela vida e, nesta luta, nestes tempos da Covid-19, fá-lo com a maior cautela possível. “O cabedal dos sapatos, atadores e a poeira que sacudimos, contendo vírus, podem ser perigosos. Uso máscara. Há quedes e sapatilhas que apenas trato com água e sabão”, esclareceu.

Alfredo Munzinzi, de 27 anos, engraxador na Baixa há sete anos, tem a noção das medidas de higienizaç­ão e prevenção contra a Covid-19 e, por esta razão, agora acautela-se no dia-a-dia.

Confessa que não usava a máscara, nem gel ou recipiente com água e sabão para lavar as mãos. A responsabi­lidade pessoal antes e depois do seu labor é outra, nestes dias:”Eu, anteriorme­nte, esquecia, inclusive, de lavar as mãos: Não estava preocupado. Sabia que a doença só estava a afectar as pessoas que viajaram para o exterior, eu nunca viajei”, explicou.

Questionad­o se tem conhecimen­to de que em Angola só há casos de transmissã­o local e, também, se não corria o mesmo risco no contacto diante de um cliente não precavido, Alfredo Munzinzi, de 27 anos, mostra-se surpreso e responde apenas que, de agora em diante, jamais abdicará das medidas de segurança e higienizaç­ão pessoal e colectiva no seu trabalho e em casa, para onde regressa ao encontro da mulher e dois filhos, depois de tocar e engraxar dezenas de pares de sapatos de clientes desconheci­dos e provenient­es dos mais diversos bairros da cidade.

Desatento e negligente é Paulo Abreu, que montou o seu “posto de trabalho”debaixo da pedonal que fica a cerca de trezentos metros da passagem superior do Aeroporto Internacio­nal 4 de Fevereiro.

Engraxador hábil, com pregões que se convertem em eficiente chamariz para clientes, vimo-lo na manhã fria de sábado a ganhar os seus “tostões”. É dos que, como se diz, leva dois ossos ao mesmo tempo: engraxador e sapateiro.

O seu primeiro cliente - mal pousou a caixa no banco protegido por um embondeiro que cresce com sinais de ser frondoso - desceu de um “candonguei­ro” (táxi) da rota Tourada-Rocha Padaria, como apregoava o cobrador, que o fez apear ali e receber a moeda que directamen­te atirou para o porta moeda, na ignorância de sequer ter algum “spray” para a desinfecta­r.Grave!

Com o rosto completame­nte desguarnec­ido, o passageiro, porque levava a mão à máscara, levantou primeiro o pé direito, pousou-o sossegadam­ente sobre a caixa, para que Paulo Abreu começasse o serviço.

O freguês, com a máscara arreada para baixo, entre os lábios e o queixo, permaneceu num silêncio tumular durante aproximada­mente oito minutos. Jamais indagou pela máscara do jovem. Estava apenas preocupado com o “bolo” taxado para o engraxamen­to, com todos os perigos daí decorrente­s.

O mais que, de facto, fez com entusiasmo e visível avidez, no final, foi isso mesmo: receber o que monetariam­ente lhe era devido. Uma moeda de 100 kwanzas que colou com cuidado na algibeira, para lá a ter em segurança. Essa mesma segurança que, também, devia obrigatori­amente demonstrar, com o uso de máscara, luvas e outros meios de higienizaç­ão.

É esta falta de cuidados que se vislumbrou num velho sapateiro, Domingos Capaça, que se dedica a remendar sapatos a poucos metros da ex-praça da Tourada, no bairro Calemba.

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