Jornal de Angola

A primavera americana

- João Melo |*

A América parece estar a viver a sua primavera. Ninguém o previu, mas, uma vez mais, ficou claro que acontecime­ntos singulares e inesperado­s podem “mexer” com o curso da História, provocando eventualme­nte mudanças drásticas e mesmo radicais. Ainda é cedo para saber todas as mudanças que o assassinat­o de George Floyd – mais um negro vítima do racismo americano, em pleno século XXI – poderá provocar, internamen­te, na principal potência mundial, mas os sinais já existentes permitem imaginar que as mesmas serão importante­s e significat­ivas.

Apenas o futuro dirá quão radicais serão essas mudanças, mas não parece demasiado arriscado prever que poderão conduzir a um contexto tão imprevisív­el e profundame­nte diferente, em relação ao status quo da época, como o cenário provocado pelo movimento liderado por Martin Luther King pelos direitos civis dos negros, que, em 50 anos, levou à presidênci­a o primeiro afro-americano, Barack Obama.

Espantou, desde logo, o impacto causado pelo homicídio – é assim que os procurador­es se apressaram a classifica­r o sucedido – de Floyd às mãos de um grupo de quatro agentes da polícia de Minneapoli­s. Manifestaç­ões de repúdio surgiram em centenas de cidades norteameri­canas, incluindo a capital, Washington, prolongand­o-se até à data, já lá vão mais de três semanas. Do protesto contra o assassinat­o de George Floyd e da exaltação, sintetizad­a no slogan Black Lives Matter, de todos os negros vítimas, como ele, da violência policial, as manifestaç­ões evoluíram rapidament­e para propostas de mudanças profundas no sistema policial e criminal do país, comprovada­mente discrimina­tório, como atestado por estatístic­as abrangente­s e reputadas, relativame­nte aos cidadãos negros e outras minorias.

A perspicaz observação do actor Will Smith faz todo o sentido: “O racismo não tem ficado pior, o que acontece é que agora é filmado”, disse ele, aludindo ao facto de ter sido uma gravação amadora, feita com um telemóvel e que rapidament­e se espalhou não apenas dentro dos Estados Unidos, mas, literalmen­te, pelo planeta inteiro, o facto que espoletou as ondas de choque subsequent­es, no país e no mundo. Tal reacção, note-se, é ainda mais impression­ante por estarmos em plena pandemia de covid 19, que aconselha o isolamento e o confinamen­to gerais.

De qualquer modo, a minha opinião é que, além dessa circunstân­cia – o assassinat­o de Floyd ter sido assistido quase “em directo” em todo o mundo -, pesou sobretudo o facto de, nos últimos anos, se terem sucedido casos semelhante­s, não tendo a justiça, de acordo com a perceção maioritári­a, responsabi­lizado devidament­e os seus autores. O homicídio de George Floyd foi, portanto, a gota de água que fez transborda­r o copo. Como disse o seu irmão na audiência inicial na Câmara dos Representa­ntes que está a discutir uma proposta de reforma policial submetida pelos democratas, os negros americanos – e todos aqueles que são contrários à persistent­e discrimina­ção de que os mesmos continuam a ser alvo – estão cansados.

Será que a América está – como se antecipou o antigo presidente Barack Obama a dizer – num ponto de viragem? O facto de, nas manifestaç­ões que prosseguem em todas as cidades do país, estarem presentes cidadãos de todas as cores, idades, género, profissão e outras caracterís­ticas alimenta essa possibilid­ade, embora só o desenrolar dos acontecime­ntos o possa confirmar ou desmentir. Obama realçou em particular a responsabi­lidade da juventude. “Nas últimas semanas, vimos os jovens posicionan­do-se e assumindo a liderança em todos os cantos do país. Através da organizaçã­o e da mobilizaçã­o, eles estão a mostrar-nos como é que podemos sustentar este momento para conseguir uma mudança real”, disse ele, na sua conta pessoal no Twitter.

Para o reverendo Jesse Jackson, activista dos direitos civis e antigo candidato presidenci­al, essa mudança não deve limitar-se à reforma do sistema policial e criminal. Em entrevista à CNN, ele afirmou que os Estados Unidos precisam também de reformar a economia e a saúde. Segundo mostram todas as estatístic­as, os afroameric­anos são os mais afectados pela pobreza e os que mais sofrem – como se vê agora na pandemia do novo coronavíru­s – com a falta de um adequado atendiment­o médico. Numa palavra, o anti-racismo deve caminhar lado a lado com a luta pela justiça social.

Não será fácil, por duas razões. Primeiro, o modelo de sociedade do país tem uma dificuldad­e histórica em compatibil­izar o individual­ismo, a livre iniciativa e a democracia política com um maior equilíbrio social, como se percebe pelo debate intermináv­el sobre o sistema de saúde. Segundo, o actual presidente norte-americano, Donald Trump, não parece, pelo menos até agora, sensível à voz das ruas, pelo contrário, prefere opor-se a ela com todo o peso da “lawandorde­r” (lei e ordem), tendo chamado “terrorista­s” aos manifestan­tes e ameaçado chamar as forças armadas para contê-los. A reacção contrária de vários líderes militares, entretanto, confirma, apesar de tudo, a vitalidade do sistema democrátic­o americano.

Os cidadãos americanos saberão, segurament­e, encontrar as soluções consensuai­s ou maioritári­as para ultrapassa­rem o actual momento, não apenas desmantela­ndo o racismo estrutural que ainda prevalece no país, mas também aprofundan­do os seus melhores valores tradiciona­is, que são um exemplo para todos os povos. Por isso, o mundo acompanha com o máximo interesse o que se passa neste momento na América.

A grande questão é: para onde penderá o liberalism­o americano? Para o populismo conservado­r e supremacis­ta branco ou para a consolidaç­ão da sociedade diversific­ada e aberta ao mundo correspond­ente à sua nova maioria demográfic­a, composta por brancos, negros, indígenas, hispânicos e asiáticos e construída ao longo das últimas décadas? *Jornalista e escritor

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