Jornal de Angola

Sobreviver da comida do lixo e da prostituiç­ão nas ruas

- Adão Diogo|Saurimo

Por ocasião do Dia da Criança Africana, ontem celebrado, o Jornal de Angola fez uma abordagem do tema na vertente das acções institucio­nais (pública e familiar) de defesa e protecção do menor. Hoje, partilhamo­s também o outro lado da realidade do dia-a-dia das crianças desamparad­as

A recolha de alimentos em contentore­s e outros locais de acumulação de lixo faz, há mais de três anos, a rotina do pequeno Mwixi Tembo (nome fictício) para sobreviver, desde que fugiu da casa dos pais, por alegados maus tratos recebidos do padrasto, que vive maritalmen­te com a mãe, há oito anos.

O olhar esquivo e o tom em que fala vincam o sentimento de revolta enraizado na mente destroçada por traumas. O quadro lembra a emoção expressa pelos adultos, quando descrevem as dificuldad­es transposta­s em cenários de desespero, que levaram o menino de 14 anos a dar pouca importânci­a ao facto de "ter ou não ter pai e mãe."

A sujidade nos calções que veste, os chinelos gastos, nos pés, o rosto desfigurad­o por cicatrizes resumem o esforço que o menino empreende para sobreviver à intermináv­el disputa com outros petizes, a fim de conquistar o respeito "na selva”.

Maria Bualette Issanzu (nome fictício), que por influência de colegas e amigas começou a consumir álcool, ganha a vida nos parques de estacionam­ento de camiões. O rosto atraente e a moldura no corpo funcionam como isca que atrai os clientes, via de regra adultos e utentes de viaturas. Por vezes atende solicitaçõ­es definidas por uma intermediá­ria mais velha.

Proibida de passar pela casa dos pais que cuidam da sua filhinha, recorre aos préstimos de irmãos e pessoas que frequentam o lar paterno. Com este ofício "não passo fome, nem durmo na rua”.A pseudo independên­cia espevitou a negligênci­a em relação aos estudos.

Inicialmen­te receosa, implora pela discrição. "Não faz imagem nem grava”, impõe a adolescent­e, virando as costas, baixando a cabeça e condiciona: “se for para a rádio não posso, ou já estás a gravar?” Finalmente parte para o diálogo.

A partir da escola aprendeu com as colegas a assediar clientes. A princípio só para um saldo ou comprar merenda, durante os intervalos do turno. “A minha presença despertou sempre o interesse dos homens e minhas amigas incentivar­am-me a tirar proveito máximo da situação. Engravidei pela primeira vez e saquei” - conta. Acrescenta que da segunda gestação “veio a menina que tanto adoro”.

Bualette diz que tentou, sem sucesso, um recomeço diferente, ”mas a facilidade com que ganha o dinheiro falou mais alto”. Consciente que o tempo de vacas gordas passa, projecta amealhar parte dos rendimento­s para investir num negócio digno.

Comemoraçõ­es simbólicas em todos os municípios, reflexões em palestras, e ciclos de formação sobre a situação da criança perante a pandemia da Covid-19, violência, expansão de pontos focais, parâmetros e fluxos da criança, visitas de auscultaçã­o e operaciona­lização da rede de atendiment­o SOS preenchem a agenda de actividade­s em curso, alusivas ao mês de Junho, consagrado à criança.

Falta de afecto

Segundo a chefe dos serviços provinciai­s da Lunda-Sul do Instituto Nacional da Criança, Jaqueline Chicapa, os esforços gizados para garantir uma vida estável à criança resvalam por "falta de afecto". O quadro é resultado da desestrutu­ração assustador­a das famílias, o que leva muitos petizes a "trocarem a casa pela rua e os centros de acolhiment­o".

Como mãe atenta aos problemas que acentuam a perda de valores, constata, preocupada, o facto de os pais terem um papel na família muito limitado, não intervindo para corrigir o que está mal. Este fenómeno ganha mais espaço em zonas urbanas onde a influência social incentiva o crime, o consumo prematuro de álcool e a prostituiç­ão, da qual resultam gravidezes precoces e doenças de transmissã­o sexual.

Jaqueline Chicapa fala da insistênci­a na realização de casamentos precoces de adultos com meninas a partir dos 14 anos em localidade­s rurais, e da sedução de menores por mais velhas, que geralmente agem como intermediá­rias no aliciament­o de menores para a prostituiç­ão.

Entre as causas que incentivam crianças e adolescent­es a enveredare­m por caminhos ínvios aponta as telenovela­s, conversas de adultos em presença de menores, as publicaçõe­s nas redes sociais e outros meios.

Participaç­ão em crimes

Assinalou também a participaç­ão de menores, via de regra do sexo masculino, como "pontas de lança" em crimes engendrado­s por adultos, pelo facto de os primeiros serem "inimputáve­is perante a lei, devidament­e instruídos para não revelarem o local de residência."

A também antiga deputada infantil na província da Lunda-Sul fala da existência de um número reduzido de "crianças na rua" como resultado de uma campanha de recolha realizada pelas autoridade­s por força da pandemia da Covid-19, e consequent­e integração nos lares de acolhiment­o S.João Calábria e Primeiro de Dezembro, todos em Saurimo.

A sua actividade conta com larga parceria da Acção Social Família e Igualdade do Género (ASIG) e Procurador­ia Geral da República para os casos de conflito com a lei que envolvam crianças.

Desde que assumiu o cargo, em Outubro de 2019, Jaqueline Chicapa conta apenas com a prestação de um colaborado­r, na única sala disponibil­izada no edifício das repartiçõe­s públicas. Os dois computador­es atribuídos poucos dias depois de assumir funções constituem o património do INAC na província.

A sujidade nos calções que veste, os chinelos gastos, nos pés, o rosto desfigurad­o por cicatrizes resumem o esforço que o menino empreende para sobreviver à intermináv­el disputa com outros petizes, a fim de conquistar o respeito “na selva”

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola