Mário de Andrade sob o olhar de Edmundo Rocha
No dia 11 de Maio de 2010, Edmundo Rocha, médico e investigador social, proferiu, na Fundação Mário Soares, em Lisboa, uma palestra sobre a vida de Mário de Andrade, cujo texto me foi posteriormente enviado, graças às profícuas relações de mútua amizade que fomos cultivando, desde 1995 até Março de 2020, quando faleceu.
Com o meu regresso a Luanda, em 2005, as nossas sistemáticas sessões de tertúlia passaram a ser substituídas pela correspondência electrónica. Mas, quando eu passasse por Lisboa, visitava-o na sua residência em Massamá, almoçávamos num pequeno restaurante perto da sua casa e conversávamos depois longamente sobre a sua experiência como “freedom figther”. Face à extensão do texto que produziu, decidi divulgá-lo por partes, como forma de proporcionar aos estudiosos destas matérias, mais um testemunho de um participante activo do moderno nacionalismo angolano. A esta primeira parte do texto de Edmundo Rocha, baptizei-a com o seguinte título: “De Luanda a Paris”.
Eis agora a história de vida de Mário de Andrade, sob o olhar de Edmundo Rocha:
«Respeitado, admirado, acarinhado tanto em Paris, como em Conackry, Rabat, Argel, Maputo, Praia e Bissau, pelo seu empenhamento nas lutas pela liberdade dos povos africanos de expressão portuguesa como um dos mais brilhantes arautos da identidade africana e um dos principais obreiros da sua corrente marxista, Mário de Andrade, como tantos outros nacionalistas, teria encontrado poderosas razões para abandonar precipitadamente a sua pátria logo após a independência. Procura, então, terras de abrigo onde daria o seu contributo para a consolidação das jovens independências, na Guiné primeiro e depois em Moçambique, triste destino para um Homem de diálogo e de compromisso.
Oriundo de uma terra de letrados e de homens de igreja, no Golungo Alto, é um autêntico “filho da terra”. Conheceu em sua casa, nas Ingombotas, muitos dos amigos de seu pai, um dos Kotas mais respeitados então, “os Mais Velhos”, como André Mingas, Manuel Bento Ribeiro, Gervásio Ferreira Viana, fundadores como ele da Liga Nacional Angolana, nos anos 30. Mário cedo integra as actividades e as lutas na Liga, pelas reivindicações básicas: a plena cidadania, o Bilhete de Identidade, o acesso à instrução.
Em Lisboa, onde chega em 1948, inscrevese na Faculdade de Letras, em estudos difíceis, vivendo de explicações. Liga-se àqueles que iriam ser os seus companheiros de sonhos e de lutas para toda a vida: Noémia de Sousa, Amílcar Cabral, Alda do Espírito Santo, Lúcio Lara e Agostinho Neto, com quem cria uma tertúlia informal na casa da Tia Andreza, no 37 da Rua Actor Vale, o Centro de Estudos Africanos. Casa com pergaminhos históricos que já deveria ter uma placa comemorativa, não só à Tia Andreza, recentemente falecida, como ao próprio Centro de Estudos, espaço de memória, de estudos e de reflexão à volta de temas africanos. Nos Arquivos da Torre do Tombo encontrei o minucioso programa de trabalhos, poesia, prosa, história, etnografia, sociologia, economia, etc.
O que mostrou o grau de seriedade e de compromisso, de redescoberta do Eu Africano, da necessidade de reafricanização e de inserção no quadro mais global dos movimentos de emancipação dos negros tanto na América, como nas Antilhas e em África. Foi um espaço criativo, que eu frequentei assim como o meu amigo Dr. Tomás Medeiros. Foi nesse espaço que Mário gizou com o seu amigo Francisco Tenreiro, o “Caderno de Poesia Negra de Expressão Portuguesa”, primeiro marco do movimento da negritude nos espaços lusos.
As suas brilhantes palestras na Casa dos Estudantes do Império (CEI) e no Ateneu de Coimbra tiveram uma influência decisiva na tomada de consciência de uma identidade específica no seio dos jovens africanos, estudantes e marítimos, no início dos anos 50. A sua passagem pelo MUD juvenil foi breve, avesso que ele era à disciplina que toda a militância clandestina exigia, o que o levou a ser detido pela PIDE, em 1951 e em 1954. Mário apercebe-se, então, que os problemas dos povos colonizados não constituíam uma preocupação para os antifascistas portugueses, estimando eles ser prioritário o derrube do fascismo. Em Junho de 1954 Mário decide fixar-se em Paris, tal como ele dizia: “um pouco para escapar a um círculo que eu via fecharse à minha volta”.
Vivia-se em Portugal, nessa época, num ambiente hermético, provinciano, sob a pressão permanente das leis fascistas. Mário aspirava por espaços mais largos, universais, onde pudesse lançar a mensagem de desespero e de esperança dos seus compatriotas. Mário decide, então, lançar-se nessa “grande aventura intelectual”. Foi numa manhã pardacenta, que três jovens africanos, Aquino de Bragança, Marcelino dos Santos e eu próprio, acolheram na Gare d’Austerlitz, aquele jovem franzino, de olhos cintilantes de malícia e humor, com óculos de aros metálicos, fatigado de uma longa viagem de comboio, aquela personagem que iria imprimir uma nova dinâmica aos sonhos e esperanças de muitos jovens estudantes e trabalhadores marítimos na diáspora e que iria denunciar ao mundo as iniquidades do regime fascista e colonialista de Salazar.
Os primeiros tempos não foram fáceis, vivendo do apoio dos seus amigos, dormindo ora no quarto de uns ora de outros, na Maison du Maroc, Bd Jourdan, na cidade Universitária. A Présence Africaine abriu-lhe as portas e foi o cadinho para os seus voos intelectuais. Foi aí que Alioune Diop o põe em contacto com homens de letras, políticos e estudantes da África Negra, das Caraíbas e intelectuais de expressão inglesa, como Senghor, Dadié, Cheikh Anta Diop, Bastide, D’Arbousier, Césaire, Basil Davidson, entre outros, os quais viriam a ser determinantes no apoio à mensagem nacionalista».
* Ph. D em Ciências da Educação e Mestre em Relações Interculturais.
NOTA DA REDACCÂO: O presente texto é o primeiro de um conjunto de três. O terceiro e último texto foi, inadvertidamente, publicado na semana passada. Pelo lapso, as nossas sinceras desculpas ao autor e aos leitores
Oriundo de uma terra de letrados e de homens de igreja, no Golungo Alto, é um autêntico “filho da terra”. Conheceu em sua casa, nas Ingombotas, muitos dos amigos de seu pai, um dos Kotas mais respeitados então, “os Mais Velhos”, como André Mingas, Manuel Bento Ribeiro, Gervásio Ferreira Viana, fundadores como ele da Liga Nacional Angolana, nos anos 30. Mário cedo integra as actividades e as lutas na Liga, pelas reivindicações básicas: a plena cidadania, o Bilhete de Identidade, o acesso à instrução