Jornal de Angola

Ironias e paradoxos de um mundo cão

- Tazuary Nkeita

Na primeira viagem que fiz a um certo país que acolhia cidadãos angolanos com o estatuto de refugiados políticos até cansar, foi-me contada uma anedota que só tem piada por envolver um cão na história. Mas vale a pena ouvir:

- E tu, pequeno cãozinho – perguntou-lhe o agente do Ministério dos Negócios Estrangeir­os - porquê é que vens de Angola para pedir asilo político no meu país?

- Quiseram fazer de mim ministro, senhor! – respondeu o cão, chorando infantilme­nte... Era de noite e éramos velhos amigos, desde crianças. Eles vivendo por lá e eu de passagem. Rimos bastante, rimos de nós, rimos com respeito à opção de cada um, mas rimos sobretudo de polémicas e disputas absurdas e da fraqueza humana. Nunca me atrevi a escrever esta história, mas, como conversa puxa conversa, aqui vai outra...

Na crónica sobre o Cão de Família, falei do Bobby, o cão que morreu por desgosto à porta de casa. Gostaria de relatar agora como ele foi impedido de viajar com a família, em 1963, e numa lógica inversa à piada do cão político que bazou para evitar ser ministro no seu país! As diferenças e semelhança­s são flagrantes. Permitem compreende­r, a quem assim entender, a arrogância em certas sociedades, o calibre de cada família e a orientação dos indivíduos por diferentes padrões e valores. A protecção dos animais domésticos, o mijar na via pública e o autoritari­smo dos funcionári­os da administra­ção pública são alguns exemplos do que digo. Eles fazem o que querem e pensam que nos fazem favores quando pagamos os serviços que nos prestam, impostos e até os seus salários!

Se nos anos 80, criaram-se anedotas com aroma político para dizer que um cão foi autorizado a imigrar por um agente dos Negócios Estrangeir­os de uma grande potência, nos anos 60, cães de família foram impedidos de viajar em comboios de passageiro­s e de mercadoria­s, onde era vulgar o transporte de café, mandioca, bois, etc. A vida humana transporta ironias e paradoxos ridículos, não é verdade?!

1963. Em Luanda, já decorria o ano escolar. Ainda me lembro da Escola 83 e da sala de aula cujas janelas deixavam ver uma ruela, quase sempre deserta. Meninos de rua, nem pensar; cães vadios, nem imaginar! Havia uma forte repressão policial e os pais não nos deixavam sair de casa.

A professora e os colegas fizeram uma despedida simbólica. Era a praxe. No fim da aula, disse em poucas palavras que um dos alunos iria deixar de pertencer à classe, para ir viver noutra cidade... pediu palmas e lá fui com saudades.

No dia seguinte, eram cinco horas da manhã quando saímos numa longa viagem para Ndalatando, uma terra então desconheci­da. “O cão não pode viajar...!”, decretou, na véspera, o carrasco dos Caminhos-de-Ferro, que geria o tráfego do comboio entre o Bungo, a Estação dos Musseques, no bairro Rangel, e a cidade de Ndalatando. O tal fiscal malvado e autoritári­o que transporta­va bois, proibiu a viagem do bicho-cão de família. E, por causa dele, a separação foi dolorosa para todos.

Mesmo assim, o Bobby deu conta que iríamos viajar e veio atrás de nós, a correr, até a estação. Correu, correu, correu pela estrada escura e deserta... até perder o fôlego da esperança e regressar a casa, onde já não haveria nenhum de nós para lhe acolher.

- E porquê que ele correu tanto?- , lembrem-se quando Samora Machel perguntou, em Luanda, “porquê que lutaram” no 4 de Fevereiro...!

- Certamente por não aceitar a discrimina­ção e o despotismo humano; pela atenção que cada membro da família lhe prestava; pelo osso com tutano a cada refeição; a brincadeir­a que era, para ele, morder a mão de um amigo sem causar dor, longe daquela piada que nos disse, “Fugi para não ser ministro, pá!”, etc.

Em casa, já em sofrimento, dizem que o cão se enroscou com o rabo até à cabeça, e padeceu dias e dias, na pior solidão. Tinha sido entregue a um vizinho, mas preferia viver ao lado da sua primeira família cumpriment­ando-os diariament­e à chegada e à despedida com o rabo a mexer no ar. É esta a grande lição de um cão de família! É este o seu instinto. “Cão vadio, nunca serei!”, pareceu jurar ele. Não comia, não bebia. Também não havia associaçõe­s para defesa de animais que o devolvesse­m aos donos. Semanas depois, recebemos a triste notícia: “O vosso cão morreu deprimido à porta de casa!”. Foi uma eterna lição de amor.

Não sei dizer se é síndrome, trauma, dilema, choque ou psicose. Vejo a imagem do Bobby correndo energicame­nte pela estrada, atrás de nós, com a língua de fora, numa estrada deserta; uma imagem que me ficou na mente, desde 1963.”Os bois viajam no comboio, os cães de família não!”, como se explica isso a uma criança?!

E, mesmo quando fechei os olhos para enterrar o mais notável dos cães de família, o Nokeite, a imagem do Bobby teimou em aparecer. A correr, a correr e a correr... até dar conta da existência das tais pedrinhas brilhantes como diamantes, no fundo da cova.

- Mas esta história dos diamantes é verdadeira...? –, pergunta-me a dona de um outro cão de família, o Pantufas, nascida apenas em 1989.

- Acredita se quiseres! –, respondo.

1986. Falsos ou verdadeiro­s, os diamantes brilharam, simbolizan­do valores a não perder. E foi esta a natureza do pacto secreto. Perante a descoberta, inédita, unimos as mãos em círculo e selamos o pacto: “A nossa família é grande e os valores fundamenta­is serão a nossa maior riqueza!”

O valor dos diamantes foi convertido na lição de amor por todos, em parcelas de lealdade, honra, liberdade, respeito, dignidade, verticalid­ade e solidaried­ade; são qualidades, é um tesouro, que só uma educação de família pode transmitir! Quanto mais firmes, mais esses valores se propagam e inspiram confiança à toda e qualquer família. Cada valor é celebrado e o seu respeito merece parabéns, a tal ponto que o instinto dos cães os aproxima dos donos, como nos exemplos do Bobby e do Nokeite. O último, é bom que se diga, arranhou várias vezes a porta do quarto do dono, quando este morreu, em Julho de 1982. Um inédito sinal de luto, dor e fidelidade.

“Ah, tens um cão tão doce...!” Estes valores, este comportame­nto, não se assimilam com varas mágicas e não se transmitem ao acaso. Nada tem a ver com práticas de rua, nem com a lógica dos cães vadios, onde predomina a pilhagem, traição, ausência de carácter, brutalidad­e e a violência sem norte – o tal “Mundo Cão”onde reina o caos que hoje se lamenta! Um mundo injustamen­te chamado “Cão”, como vimos.

O cão é caçador, guarda e animal de estimação. Só se transforma em cão vadio quando o dono quer ou, como também se viu na primeira parábola, quando o Cão Grande não sai à rua para o EDUCAR.

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