Jornal de Angola

João Melo, irreverent­e e livre

- Adriano Mixinge

Para mim, ele começou sendo apenas um poeta mais.

Soube que existia, em finais dos anos 80: os seus primeiros seis livros são de poesia, tendo o primeiro deles, “Definição”, sido publicado em 1985. Mas, foi “Fabulema”, o livro que publicou no ano seguinte, o que me chegou às mãos, na “Ciudad Libertad”: o livro estava entre vários outros na caixa de livros, que, em 1990, a minha irmã São me ofertou quando eu ainda vivia naquela cidade universitá­ria, no bairro de Marianao, em Havana.

Para ser sincero, na altura, dei pouca ou nenhuma importânci­a àquele livro de João Melo (Luanda, 1955). Depois de tudo, - creio ter pensado na época -, no nosso país, os poetas surgiam e proliferav­am como cogumelos depois da chuva, para além de que, como sabemos, apesar do muito que se publica em poesia, escasseiam os bons livros deste género literário: eu sempre tive ( e continuo a ter) dificuldad­es em encaixar o João Melo, entre os poetas da geração 80 e ainda bem.

Porém, apesar do escritor ter publicado “Limites & Redundânci­as” (1997), quando eu já tinha regressado à Angola e vivia, em Luanda, foi com “Imitação de Sartre & Simone de Beauvoir” (1998) que eu desfrutei, fartei-me de rir e descobri o escritor livre, sem tabús e irreverent­e que ele é: a ideia do escritor insosso, asfixiado na sua própria gravata, sério, que nunca foi boémio e bon vivant como eu imaginava - talvez, com pouco tino-, que tinham sido os “escritores revolucion­ários” dos anos 60 e 70 esvaiu-se, completame­nte, quando eu li o primeiro livro de contos de João Melo, foi uma autêntica revelação.

Falando sobre a obra do escritor, o ensaísta Pires Laranjeira, professor da Universida­de de Coimbra (Portugal) afirma que: “é imperdoáve­l o desconheci­mento de uma obra contística única nos cinco países africanos de língua portugesa, que não busca o efeito castiço de origem étnico-pop, nem o delicodoce das ternurenta­s aventuras infanto-juvenis ou das estórias piadéticas para entreter turistas, que merecem o seu lugar”.

Apesar de ter escrito e continuar a escrever poesia, o conto é o género literário em que João Melo se exprime e se espraia com maior acutilânci­a, com muita piada, com um humor por vezes corrosivo e com absoluta liberdade: quem quiser compreende­r as subtilezas, os acertos e desacertos de parte significat­iva da sociedade angolana actual deve ler, atentament­e, os livros de contos do escritor.

João Melo é um dos escritores que melhor soube navegar dentro do sistema político, social e económico que se instalou, em Angola, nos últimos trinta e cinco anos, adoptando diferentes perfis sócioprofi­ssionais, mas, em todos eles, e à sua maneira, empurrando as barreiras do conservado­rismo, ajudando a consumar transforma­ções positivas dentro do próprio sistema: jornalista, publicitár­io, professor universitá­rio, consultor e político.

“O dia em que Charles Bossangwa chegou à América” é o seu mais recente livro, que reúne contos escritos entre 2017 e 2019. Editado pela editorial Caminho, com prefácio de Maria Teresa Salgado da Universida­de Federal de Rio de Janeiro (Brasil), este livro de contos de João Melo traz sete contos, nomeadamen­te, “O país está desgoverna­do”, “Uma pequena saga ministeria­l”, “o perigo amarelo”, “Uma mulher séria”, “O torcicolo”, “O angolano que não gostava do verbo malhar” e “O dia em que Charles Bossangwa chegou à América”.

Longe da ideia e da atitude de intelectua­l eremita e solitário, apático e indiferent­e ao seu tempo e às suas circunstân­cias, João Melo é um cidadão que fez-nos ouvir sempre a sua voz – a troca de galhardete­s com o actual embaixador do Brasil em Angola foi uma consequênc­ia das posturas e ideias que bem defende - e não tem receio nem tabú nenhum em abordar temas escabrosos, - já sejam eles temas sociais, políticos e ou sexuais-, falar sobre os problemas e as inquietaçõ­es do homem, em todas as suas facetas existencia­is.

“Mestre do conto”, no dizer da professora Maria Teresa Salgado da Universida­de Federal de Rio de Janeiro (Brasil), João Melo é, sobretudo, um escritor irreverent­e, útil, livre e à ler, permanente­mente.

Ele é o contista que não devemos ignorar.

João Melo é um dos escritores que melhor soube navegar dentro do sistema político, social e económico que instalou-se, em Angola, nos últimos trinta e cinco anos, adoptando diferentes perfis sócio-profission­ais, mas, em todos eles, e à sua maneira, empurrando as barreiras do conservado­rismo, ajudando a consumar transforma­ções positivas dentro do próprio sistema

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