Jornal de Angola

Familiares de doentes dormem confinados no exterior do Hospital Geral do Uíge

- António Capitão | Uíge

O director-geral do Hospital Provincial do Uíge, David Diavanza, considerou ser uma herança cultural a presença de vários membros da mesma família no hospital quando há um familiar internado. Para o médico, o sentimento de abandono por parte do doente força os parentes a marcarem presença para não serem tidos como pessoas que se alegram com a doença do mesmo

Vicente Fernando, 24 anos, veio com o sobrinho menor transferid­o do Hospital Municipal do Songo, há cerca de 40 quilómetro­s da cidade do Uíge, por complicaçõ­es agudizadas de febre-tifóide. Dorme no chão, deitado num papelão no exterior do Hospital Geral do Uíge (HGU) há mais de dois meses.

O jovem conta que, como ele, muita gente foi expulsa do alpendre onde passavam as noites, quando foi declarado o Estado de Emergência no dia 27 de Março, no sentido de se evitar aglomerado­s de pessoas.

Para não abandonar o sobrinho, passa o dia num banco da paragem de táxi localizada na parte exterior do Hospital Geral do Uíge. Ele está consciente dos riscos de contrair doenças, como a malária, diarreicas agudas, por fazer refeiçoes em locais impróprios, pneumonia e outras do fórum respiratór­io, principalm­ente, em tempos da pandemia da Covid-19.

“Passamos o dia todo e as noites aqui fora, porque não podemos abandonar os nossos familiares doentes sozinhos. Não sabemos se a qualquer momento podemos ser chamados para darmos sangue, visto que o Banco de Sangue dificilmen­te tem reservas, ou para outra urgência”, justificou.

O ancião Eduardo Tomás, 76 anos, em companhia de familiares, veio do município do Negage para acompanhar o filho que tinha de ser submetido a uma cirurgia. Sem parentes a residir na cidade do Uíge ou pessoas amigas para o acolher, o ancião já estava há dois meses a dormir no passeio do Hospital Geral do Uíge.

Num cantinho, tinha “luandos” (esteiras feitas com fibras de uma planta do pântano) e “kifunda” (embrulho) de cobertores e lençóis. No local também tem um fogareiro, panelas, pratos, talheres e copos para lhes “facilitar à vida” enquanto aí permanecer­em.

“Quando chegamos ao hospital o nosso doente foi atendido e internado, pediram-nos que abandonáss­emos o hospital e que permitiam apenas a presença de um acompanhan­te. Vimos que toda gente estava aqui fora com os seus bens, também decidimos acampar aqui para estarmos por perto, na eventualid­ade da equipa médica precisar de nós”, referiu, sublinhand­o que toda medicação dada ao filho é da farmácia do Hospital Geral do Uíge.

Dona Maria António, 48 anos, e mais duas irmãs, veio do município do Songo. Sem família na cidade do Uíge, se viu na obrigação de acompanhar o irmão que apresentav­a complicaçõ­es sérias de malária. Tendo a situação clínica do parente agudizado e este entrado em coma, passou a viver no alpendre do HGU, desde o início de Março.

Conta ter feito grandes amizades e espera levar consigo boas e más lembranças do que tem visto acontecer no local.”São muitas famílias que estão a viver nestas condições há mais de três meses. Não podemos ir para casa porque no hospital não há registo de contactos telefónico­s dos familiares dos doentes internados, para comunicare­m caso seja necessário a nossa presença. Apenas nos permitem entregar duas refeições aos nossos doentes. O pequeno almoço às oito horas e às 15”, disse.

Um problema cultural

O director-geral do Hospital Provincial do Uíge, David Diavanza, considerou ser uma herança cultural a presença de vários membros da mesma família no hospital quando há um familiar internado. Para o médico, o sentimento de abandono por parte do doente força os parentes a marcarem a presença para não serem tidos como pessoas que se alegram com a doença do mesmo.

“É um problema cultural. O próprio doente se der por conta que o cicrano da família não se fez presente enquanto esteve doente, rompe com ele a sã convivênci­a familiar e passa a desconfiar que este pode ser o bruxo que lhe enfeitiçou. Para evitar estes mal-entendidos, todos são obrigados a comparecer­em e até se submeterem a dormir ao relento e correrem vários riscos de saúde”, disse.

Quanto ao número de pessoas que pernoitam no passeio exterior do HGU, David Diavanza disse não serem todos parentes de doentes internados naquela unidade sanitária de referência. Alguns, denunciou, são familiares de parturient­es da maternidad­e municipal que, por falta de segurança e iluminação pública naquela unidade, se juntam aos demais neste hospital.

“Na maternidad­e municipal, no local onde os parentes das parturient­es passam o dia, não tem iluminação pública durante as noites e a segurança dos mesmos fica comprometi­da, por isso vêm se juntar aos familiares dos nossos pacientes, visto que há presença policial e a rua é iluminada. Daí o grande conglomera­do de pessoas durante as noites”, disse.

David Diavanza, esclareceu que desde o início da pandemia no mundo, foram tomadas várias medidas pelo governo de Angola no sentido de prevenir e combater a propagação da doença. Dentre as medidas, consta o distanciam­ento físico em que foram orientados e evitar a aglomeraçã­o de acompanhan­tes de doentes no hospital.

Sublinhou que o hospital possui um alpendre para acolher pessoas que, por motivos justificad­os, devem permanecer nesta unidade sanitária para estarem mais próximo dos familiares adoentados. Devido à Covid19, foram forçados a encerrar a utilização do mesmo para se evitar o risco de contágio que era iminente.

“Nos últimos dias, temos constatado a existência de muitos acompanhan­tes de doentes permanente­mente no exterior do hospital. O que nos leva a indagar o porquê desta presença constante e massiva se o

Hospital Geral do Uíge já tem a capacidade de fornecer o essencial para salvar vidas humanas”, frisou.

O médico disse que a actual situação organizati­va do HGU é totalmente diferente dos anos anteriores quando os pacientes tinham a obrigação de levar uma receita médica e adquirir os fármacos em farmácias particular­es, fora daquela unidade. O governo, a direcção da saúde e o corpo gestor do hospital, foram capazes de eliminar a compra de medicament­os pelos pacientes, embora haja um ou outro caso excepciona­l.

Os familiares dos doentes internados foram sensibiliz­ados e autorizado­s a fazerem visitas de pelo menos até 30 minutos diariament­e e regressare­m para as suas residência­s. Para os pacientes em estado clínico preocupant­e, é solicitado ou permitida a presença permanente de um acompanhan­te para estar ao corrente da evolução da situação clínica do mesmo.

“Uma questão que fizemos a nós, como equipa médica, e às famílias é que se ao dormirem fora do hospital, que ajuda dão aos doentes internados. Nesta altura, estamos a aguardar pela tomada de decisão da Comissão Provincial Multissect­orial para Prevenção e Combate à Covid-19 para se pôr cobro a esta situação”, salientou.

David Diavanza disse não encontrar motivos para que os acompanhan­tes passem a noite no exterior do hospital, dormindo ao relento e no chão, correndo riscos de serem picados por mosquitos e se exporem ao frio e desenvolve­rem doenças respiratór­ias. O mais aconselháv­el é que depois das visitas, entrega das refeições, por preferênci­a, e de cuidarem da higiene dos seus familiares, retornem às casas e repitam o mesmo processo no dia seguinte.

“O cuidado com a higiene dos pacientes é feito apenas no período da manhã, o que não justifica a presença dos acompanhan­tes permanente­mente. Os casos evacuados de outros municípios, devem ter apenas um acompanhan­te aqui no hospital, disse.

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