Jornal de Angola

“Covid na América Latina vai deixar mais pobreza e mais desigualda­de”

Marcelo Moriconi, investigad­or do Centro de Estudos Internacio­nais do Iscte, foi um dos participan­tes no webinar da passada quinta-feira, sobre o impacto da Covid-19 na América Latina, ao lado de outros especialis­tas

- * Director do Jornal de Negócios

Depois da Ásia, da Europa Ocidental e dos Estados Unidos, é a América Latina a região que começa a ser o epicentro da pandemia. Os países da região podiam ter feito melhor, aprendendo com os acontecime­ntos no resto do mundo?

A pandemia ainda não terminou, mas já discutimos quem o fez melhor. Estamos a escrever a crónica final do jogo depois do primeiro tempo, fazendo futurologi­a opinativa. Isto tem estado a acontecer com muita veemência na opinião pública, utilizando aleatoriam­ente diferentes dados e misturando, por exemplo, contagens de mortes com Covid-19 com mortes por Covid-19, mesmo sabendo das deficiênci­as e manipulaçõ­es nos dados oficiais a nível mundial. Primeiro, deveríamos consensual­izar o que entendemos por fazer melhor ou pior. Melhor é menos mortos totais, menos mortos por quantidade de população, menos contágios, menos internados, maior idade média das pessoas falecidas, menor dano económico, mais satisfação da cidadania, imagem mais positiva dos governante­s, menos desemprego e pobreza? Obviamente, em termos de mortes geradas, a situação do Equador, onde o sistema funerário colapsou, é mais grave que no Paraguai. Também podemos dizer que nenhum país da região está perto do nível de mortes por milhão de habitantes apresentad­o pela Bélgica ou pela Inglaterra. Mas é cedo para definir se se poderia ter feito melhor. O que poderia ter feito melhor o Equador? Maior confinamen­to? Pedir às pessoas que lavem mais as mãos durante 20 segundos? Metade das pessoas não faz ideia do que é uma torneira, e menos de metade não sabe o que é ter água potável a correr durante 20 segundos. O resultado de uma pandemia como esta depende, além das políticas implementa­das, dos recursos económicos e humanos, das idiossincr­asias dos povos, de questões demográfic­as e geográfica­s, de infra-estruturas e muitas outras variáveis.

Países como o Brasil e o México destacam-se pela negativa. Têm líderes de áreas políticas opostas. Isso significa que não se pode atribuir a ideologias eficácia ou não na resposta governamen­tal à Covid-19?

Estas são as afirmações que questionei antes. México e Brasil destacam-se pela negativa, porque têm mais mortes ou porque não gostamos dos seus presidente­s? Numa entrevista anterior, pediram-me que explicasse o milagre português e a tragédia brasileira. Nesse momento, Brasil tinha 131 mortes por milhão de habitantes e Portugal 142. É ridículo. Enquanto respondo esta pergunta, o México tem 119 e Portugal 147 (sempre de acordo com os dados oficiais). Isto significa que, se estivesse na Europa, o México só seria comparado com a Alemanha, que é considerad­a um sucesso. E a tragédia brasileira estaria jogando na terceira liga, se a compararmo­s com o acontecido na Espanha. Tudo isto tem relação directa com a sua pergunta sobre a relação ideologia-eficácia. A ideologia nunca indica eficácia. O que depende da ideologia é a maneira como nos dispomos a medir a eficácia, os valores que vamos colocar na tabela de medição.

Olhemos mais ao pormenor para o Brasil. O Presidente Jair Bolsonaro, com declaraçõe­s contraditó­rias e desvaloriz­adoras do vírus, tem responsabi­lidades sérias no agravament­o da doença?

Boa pergunta para continuar a minha desconstru­ção do fenómeno. O discurso de Bolsonaro é vergonhoso, quer pelo conteúdo, quer pelas formas. Se tivesse implementa­do outro tipo de medidas, impondo mais restrições aos grupos de risco, que está claro quais são, e dando maior liberdade às pessoas que, potencialm­ente, viveriam a Covid-19 como uma simples gripe e não terminaria­m num hospital. Há sectores económicos impossívei­s de proteger, como o turismo ou a restauraçã­o, mas há muitos outros onde o dilema saúde-economia é falso e trágico, porque sectores sociais inteiros, na América Latina, ou vão para a rua trabalhar no sector informal, com risco de se contagiar, ou ficam em casa, evitam a Covid-19, e morrem de fome, dengue ou cólera.

Ora bem, eu não posso assegurar que Bolsonaro tem "responsabi­lidades sérias". Tampouco posso considerar irresponsá­veis e assassinos os que saem à rua para protestar, como aconteceu noutros países. É impossível assegurar que o Governo espanhol gerou a tragédia por autorizar uma manifestaç­ão em Março ou que o PCP vai ser culpado de uma potencial segunda vaga se organizar a Festa do Avante. Para mim, é mais interessan­te analisar o facto de a Covid19 não ter mudado a forma de actuar, falar ou argumentar de Bolsonaro. Muito pelo contrário: o que estamos a ver é o Bolsonaro que fez campanha, mas numa conjuntura social crítica. Portanto, eu não responsabi­lizo o Bolsonaro por exercer a Presidênci­a da maneira que tinha indicado o faria. Eu critico a parte do povo brasileiro que o escolheu. Isto é o que eles queriam viver. Chama-se democracia e, perante um povo imprudente, pode ser um perigo. Eu tenho denominado este dilema como a lógica da vítimacúmp­lice. A crise da democracia brasileira não chegou com a Covid, mas a pandemia veio explicitar como um eleitorado pode colocar em risco as suas liberdades.

Consequênc­ias desta pandemia para a América Latina?

A pandemia é um facto histórico que confinou o mundo inteiro, gerou um problema de saúde pública e vai gerar uma crise económica da qual ainda não sabemos a dimensão. Na América Latina, vai deixar mais pobreza, mais desigualda­de, menos emprego, ou seja, os mesmos problemas estruturai­s históricos, mas agravados, e instabilid­ade política, com sectores que tentaram concentrar mais poder e impor mais controlos e outros que procuraram mais democracia. Ou seja, a história de sempre. Embora a crise seja profunda, há, no mundo, o suficiente para cobrir as necessidad­es de todos, mas não o bastante para satisfazer a ganância de alguns, como sempre. A Covid-19 veio explicitar a crueldade das desigualda­des. Mas toda a crise é uma oportunida­de para mudanças de todo o tipo. Que o futuro seja mais igualitári­o, mais controlado, menos trágico, ou que um potencial conflito entre Estados Unidos e China termine numa guerra mundial, depende das narrativas que consigamos construir e legitimemo­s, da interpreta­ção que fazemos dos factos, e do horizonte de futuro social e comunitári­o que edifiquemo­s com elas. Antes da pandemia, morria uma pessoa de fome ou enfermidad­es relacionad­as a cada quatro segundos, muitas mais que as vítimas da Covid-19. Antes do assassinat­o de George Floyd, só em 2019, foram assassinad­as mais de 60 mil pessoas no Brasil, muitas delas por polícias. Sobra hipocrisia e facilidade de manipulaçã­o da população. A pandemia não foi uma surpresa.

Há vários anos que surgem estudos a alertar sobre isto; Obama falou disto; Bill Gates falou disto. Só faltava a data e a dimensão global. Os que prognostic­aram o futuro, o que falavam antes? Incluíam o factor pandemia no futuro nas suas análises anteriores? A normalidad­e anterior, que muitos se queixam não irá regressar, era um mundo globalizad­o, desigual e insustentá­vel que criou o contexto perfeito para isto ocorrer. A pandemia foi o que foi porque nós vivíamos como vivíamos. Neste contexto, o interessan­te das teorias conspirati­vas não é a sua verosimilh­ança, mas o facto de muita gente acreditar nelas pelo facto de existirem demonstraç­ões permanente­s de que sectores poderosos da humanidade não têm escrúpulos em colocar a existência humana em perigo. Agora, temos uma conjuntura histórica para fazermos mudanças. Mas qual é o mundo que desejamos?

 ?? DR ?? O Brasil tem registado nos últimos dias um aumento consideráv­el do número de casos e mortes relacionad­os com a Covid-19
DR O Brasil tem registado nos últimos dias um aumento consideráv­el do número de casos e mortes relacionad­os com a Covid-19

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola