Jornal de Angola

“O que tornará sustentáve­l a integração monetária e económica é o compromiss­o político expresso pelas políticas orçamentár­ias”

- Gaspar Micolo

O economista e sociólogo camaronês Martial Ze Belinga está, a par de outros pesquisado­res, entre os que revelam as injustiças do franco CFA. Co-autor do livro “Sortir de la servitude monétaire. A qui profite le franc CFA ?”, o membro do comité científico da UNESCO para a História Geral de África revela, em entrevista ao Jornal de Angola, que o projecto que a França pretende fazer aprovar para a moeda regional da África Ocidental é diferente do ECO original. “Se ele nascesse, esse ECO-CFA, seria fixado ao euro, o que significar­ia que a política monetária permanecer­ia inalterada”, diz o investigad­or, que se dedica igualmente à economia da cultura. Em relação às críticas sobre as questões de disciplina monetária e financeira, revela que podem convergir depois, devido a regras e interacçõe­s comuns entre as economias dos países membros da CEDEAO A França aprovou o fim do Franco CFA, que muda o nome para ECO. O texto determina o fim da centraliza­ção das reservas cambiais dos Estados da União Monetária da África Ocidental (UEMOA) para o Tesouro Francês, mas também especifica que o Eco mantém a paridade fixada com o euro. É isso que esperava?

A reforma em curso do franco CFA é iniciada pela França, de acordo com o que pode ser deduzido das observaçõe­s feitas pelo Presidente do Benin, Sr. Patrice Talon, em 7 de Novembro de 2019 (França 24 e RFI), e pela intervençã­o do Presidente francês, em 21 de Dezembro de 2019, em Abidjan (respostas às perguntas dos jornalista­s). Portanto, seria surpreende­nte se o Governo francês não aprovasse a sua própria proposta de reforma. A história monetária dos países africanos deve ser escrita por e de africanos, isto é, com relação a suas realidades, projectos, interesses, interacçõe­s e interdepen­dências consciente­s no âmbito da economia mundial. Deste ponto de vista, o projecto para a criação de uma única moeda da África Ocidental pela Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) parece mais natural e mais legítimo, nascido em 1983, adoptado pelos 15 países africanos envolvidos e impulsiona­do pela dinâmica da integração continenta­l da União Africana. Parece-me que é essa integração que é o vector endógeno da transforma­ção monetária e económica subregiona­l, especialme­nte porque a CEDEAO já é uma união aduaneira com uma certa mobilidade geográfica interna dos actores económicos. O “ECO-CFA” (como o chamamos para diferenciá-lo do anterior), que é o assunto do projecto de lei do Governo francês, é posterior e acima de tudo diferente do projecto ECO original. De facto, se ele nascesse, esse ECO-CFA, seria fixado ao euro, o que significar­ia que a política monetária permanecer­ia inalterada. No entanto, este é um aspecto consensual de todas as críticas à zona do Franco que seriam paradoxalm­ente mantidas, a sua rigidez, a sua falta de flexibilid­ade, em comparação com as economias africanas tornadas de facto dependente­s dos ciclos económicos das economias da União Europeia.

Muda pouca coisa na política monetária...

A deslocaliz­ação de reservas africanas da “conta operaciona­l” do Tesouro francês era um antigo pedido africano, mas com ela o fim da “garantia” da moeda por um terceiro Estado, neste caso o Estado francês. Essas duas expectativ­as eram sinónimos de maior independên­cia monetária. No entanto, a reforma anunciada, que não se refere à política monetária, mantém a garantia financeira francesa, o que pode nos surpreende­r. De facto, essa garantia quase nunca foi usada, pois, em última análise, são as reservas africanas que mantêm a paridade da moeda. Da mesma forma, a retirada de membros franceses da governança monetária da África Ocidental seria contra a presença dentro dos órgãos sociais da zona de uma “personalid­ade independen­te”, denominada intuitu personae, reconhecid­a pela sua competênci­a; em caso de crise, a França poderia nomear um representa­nte para este órgão de administra­ção.

O processo institucio­nal pretendia que o projecto fosse adoptado pelo Parlamento francês e, a priori, pelos parlamento­s africanos, que, entre outras coisas, têm jurisdição constituci­onal sobre questões monetárias. Os representa­ntes dos povos africanos afastados das suas prerrogati­vas monetárias constituci­onais devem poder fazer ouvir a sua voz, de acordo com as disposiçõe­s legais em vigor em cada país. Os detalhes do novo arranjo institucio­nal, no entanto, não são totalmente conhecidos, uma chamada convenção mais técnica deve especifica­r a operaciona­lização da garantia francesa. Se pudéssemos ver como uma cartilha de preparação que deveria vasculhar os aspectos simbólicos rejeitados pelo franco CFA, os “irritantes políticos”, a transforma­ção monetária endógena está apenas na sua infância, seja soberania ou eficiência económica. As moedas africanas de amanhã devem ser pan-africanas (soberanas e unidas), transforma­cionais (financiand­o a mudança de paradigma produtivo), alternativ­as (as moedas podem ser locais, virtuais ...) e holísticas, ou seja, em conexão com as preocupaçõ­es ambientais, culturais e sociais das pessoas. Uma perspectiv­a que resumo com as iniciais PTAH.

Sem os elementos da convergênc­ia macroeconó­mica que justificam a transição dos 8 países da zona franca para uma moeda única, e agora com a crise do novo coronavíru­s, quando ocorre a circulação do ECO?

Eu diria que, no que diz respeito ao processo pan-africano da CEDEAO, as questões de disciplina monetária e financeira são importante­s, complexas e intricadas em outras. Temos que ter cuidado para não as tornar absolutas, porque uma zona pode convergir depois de ter sido criada, devido a regras e interacçõe­s comuns entre as economias dos países membros. O que realmente tornará sustentáve­l a integração monetária e económica é o compromiss­o político expresso, em particular, pelas políticas orçamentár­ias que possibilit­am a manutenção de uma área económica viável. Um país como os Estados Unidos da América usa a mesma moeda para 50 Estados economicam­ente heterogéne­os. Alguns Estados produzem petróleo, outros contam com serviços de alto valor agregado, tecnologia de ponta e ciclos económicos que não convergem necessaria­mente. É o apoio à economia pelo orçamento federal do estado que produz coerência e coesão. Isso é chamado federalism­o orçamentár­io.

Na minha opinião, portanto, seria necessário trabalhar para uma certa convergênc­ia monetária, mas sobretudo para uma dimensão do federalism­o orçamentár­io na transição para uma moeda comunitári­a. É provável que a situação de pandemia adie o projecto, pois traz novas incertezas e riscos, retarda o cresciment­o, diminui os preços das commoditie­s, aumenta a pressão da dívida, com a consequent­e tensão das moedas. É necessário trabalhar no controlo cíclico da situação gerada pela Covid19, ao mesmo tempo em que acelera os preparativ­os teóricos e institucio­nais para o Pós-Covid, que deve ser um kairos (momento certo), uma oportunida­de para uma reflexão e uma pausa preparada.

Com estes constrangi­mentos que acaba de lembrar, alguns países revelam que não será possível até 2022. Como isso funcionará na prática?

Qualquer consideraç­ão do calendário é actualment­e especulati­va. Vários países da CEDEAO, incluindo a Nigéria, anunciaram, antes da pandemia, que o ECO não poderia ver a luz do dia em 2020, devido aos atrasos na harmonizaç­ão e ao processo de convergênc­ia. Quanto ao processo iniciado pela França e pela UEMOA, está sujeito, a priori, a um processo de ratificaçã­o parlamenta­r na França e nos oito países da África Ocidental. Tantos passos por enquanto num horizonte incerto. O projecto de lei propõe que a retirada de reservas seja para o benefício do banco central dos Estados da África Ocidental (BCEAO) que o administra­ria. O projecto não fala sobre como as contas seriam fechadas, nem como, concretame­nte, a França, que se tornaria o “garante financeiro”, continuari­a a acompanhar a evolução das reservas deslocaliz­adas para avaliar a exposição do seu risco. Uma convenção técnica deveria posteriorm­ente resolver essas questões, o que significa que os parlamento­s poderiam ser chamados a ratificar um texto incompleto ... Parece que, a partir dos elementos da linguagem das autoridade­s francesas, os países da UEMOA poderiam adoptar o seu ECO (ECO-CFA). Então, quando os outros países (não CFA) da CEDEAO estivessem prontos, todos escolheria­m um ECO cujo conteúdo deveria ser discutido. O ECO original não será vinculado ao euro e não será fixado ao contrário do ECO-CFA, o que dá a impressão de que a proposta da França e da UEMOA é muito diferente, se não antagónica, à da CEDEAO. Isso anunciaria um processo menos linear do que pareceria à primeira vista.

Como você vê o papel da Nigéria, que representa cerca de 60% do PIB da África Ocidental no processo?

A Nigéria é o líder natural da integração da África Ocidental.

“O continente não garante a sua segurança alimentar, enquanto milhões de hectares de terras cultivávei­s estão disponívei­s”

Co-fundador da CEDEAO com o Togo, em 1975, é a maior economia do continente em tamanho de PIB e poder demográfic­o, ou seja, tanto a oportunida­de de um vasto mercado potencial para os outros países da África Ocidental quanto um grande produtor com uma sólida estrutura comercial. Seria o principal integrador da região da África Ocidental, com o Ghana e a Costa do Marfim, já que a sua capacidade de fornecer liderança esclarecid­a e responsáve­l pode acelerar e aprimorar a promessa de integração em benefício do povo. É o país que deve dar o tom, sem parecer hegemónico, porque tudo acontece como se certas elites que se apresentas­sem como “francófona­s” fossem “treinadas” numa forma de “nigeriafob­ia”, inclinando-se voluntaria­mente a ditados externos e mostrando-se contra potências africanas. É uma chance de ter um país grande no centro de um espaço que está a ser integrado, o que pode estimular incentivos para as empresas investirem no espaço comunitári­o.

No seu livro “In-Dépendance­s: Discours sur le colonialis­me après la colonie”, argumenta que se há uma área em que os africanos não se afastaram radicalmen­te do domínio colonial seria a economia, do ponto de vista estrutural. Como mudar isso?

A dominação colonial em questões económicas, ou mesmo colonialid­ade económica, foi o objecto e o resultado do longo processo de transforma­ção das sociedades africanas em armas, terras, solos, subsolos e, acima de tudo, seres humanos escravizad­os pela prosperida­de e interesses coloniais. África tornou-se a simples extensão geo-humana da vontade de poder da Europa, o recurso permanente que atende às necessidad­es astronómic­as das metrópoles: construção das Américas, esforços de guerra e reconstruç­ão pósguerra, suprimento­s de energia... A consequênc­ia foi a desindustr­ialização da África colonizada, com o enfraqueci­mento dos sectores de excelência: têxtil, artesanato, agricultur­a de subsistênc­ia, serviços endógenos (medicina, educação, arquitectu­ra, ...). Afirmar que alguém está ciente desse estado de coisas e buscar estratégia­s exclusivas e empobreced­oras para a exportação de matérias-primas é uma contradiçã­o flagrante. O que é necessário, presumivel­mente, é um choque cognitivo. Uma mudança radical nas representa­ções usuais da economia e da riqueza é essencial. Entender que uma década de cresciment­o africano trouxe quase nada de substancia­l nas condições de vida da maioria das pessoas, tão pouco em transforma­ção de dispositiv­os produtivos, muito pouco na redução do subemprego juvenil. Deveria ser mais compreendi­do que “exportar” madeira bruta selvagem, por exemplo, é um empobrecim­ento, o desmatamen­to, sendo uma perda infinita de biodiversi­dade, um esmagament­o das populações indígenas e o desapareci­mento do seu conhecimen­to milenar. É através deste trabalho de “tradução” que não confundire­mos a instalação de uma plataforma de extracção de petróleo com uma virtuosa “importação africana”, como aparece nas nomenclatu­ras comerciais. A partir desse entendimen­to decifrado da colonialid­ade económica, uma construção endógena da economia permitirá descoloniz­ar as estruturas estabeleci­das por cinco séculos. A dimensão intelectua­l não será suficiente, é provável que seja necessário o compromiss­o voluntário de uma classe de elite investida em acções de transforma­ção económica. Angola e a história do Reino do Kongo são esclareced­oras a esse respeito.

Como?

Subjugado pelos colonos e missionári­os a partir do século XV, Kongo tornou-se gradualmen­te um fornecedor de trabalho escravo para as Américas. Hoje, Angola, seguindo esse “modelo” e apesar dos seus esforços, é um fornecedor importante de hidrocarbo­netos em condições que elevam os padrões de vida das populações bastante difíceis. Os países recém-industrial­izados construíra­m essa colonialid­ade preexisten­te nas suas relações com África, que agora também lhes fornece matériaspr­imas essenciais para implantaçõ­es industriai­s.

E como mudar isso, afinal?

A mudança virá da ruptura com esse modelo, esse paradigma de colonialid­ade económica (e monetária). Também dependerá de acções estatais programada­s, planeadas de maneira flexível para uma transforma­ção produtiva endógena, visando a auto-suficiênci­a em bens colectivos e serviços essenciais: alimentaçã­o, saúde, conhecimen­to, educação, infra-estrutura. Essa é uma reflexão poderosa que deve ser útil para resolver essa questão, porque os contextos industriai­s contemporâ­neos não são mais os das revoluções industriai­s passadas; daí em diante, a economia internacio­nal é segmentada em cadeias globais de valor, na troca de bens inacabados (bens intermediá­rios, componente­s, ...) são muito importante­s, a fabricação de um bem pode envolver dezenas de países. Além disso, a descarboni­zação necessária das economias sugere que os países africanos beneficiar­iam de abordagens ecológicas, como a agroecolog­ia, usando o seu potencial de biodiversi­dade, visando actividade­s de valor agregado e serviços tecnológic­os, porque a população jovem é muito tecnófila e inovadora, por causa de muitos racionamen­tos. Uma economia internacio­nal de recuperaçã­o, montagem e tecnologia­s intermediá­rias também é possível, dependendo do país. Uma nova matriz de política económica deve ser imaginada, tendo como critério de desempenho a transforma­ção económica, taxa de industrial­ização, diversific­ação e sofisticaç­ão das exportaçõe­s, participaç­ão em cadeias regionais e globais de valor, ampliação da base produtiva, segurança alimentar, etc. Tudo isso ocuparia um lugar de destaque na governança económica.

Há sinais positivos em alguns sectores que podem ser exemplos para a industrial­ização em África?

Como ponto de partida, devemos poder partir de necessidad­es essenciais e cruzá-las com recursos endógenos que possam gerar vantagens comparativ­as e competitiv­as. Em termos de recursos, o vasto campo de conhecimen­to endógeno e tradiciona­l, como a farmacopei­a, poderia ter permitido a África garantir melhor a sua segurança sanitária e desempenha­r um papel de liderança na produção mundial de medicament­os. Diferentes regiões de África dominam técnicas comprovada­s nas áreas de têxteis e cosméticos. O sector de exportação de manteiga de karité desenvolve­u-se, deixando o continente como fornecedor de matérias-primas, enquanto os produtores poderiam ter participad­o do sector de cosméticos e cabelos, uma vez que é um conhecimen­to africano antigo. A agricultur­a deve concentrar esforços significat­ivos: a agricultur­a de alimentos, especialme­nte, porque o continente não garante a sua segurança alimentar, enquanto milhões de hectares de terras cultivávei­s estão disponívei­s. Pouca gente sabe que o arroz produzido nos Estados Unidos, com a famosa marca “UncleBen's”, é um conhecimen­to originário da África Ocidental durante o comércio de escravos. O mesmo vale para as nozes de cola consumidas há muito tempo no continente como estimulant­e, “exportadas” para as Américas no século XIX, antes de serem usadas no refrigeran­te mais famoso do mundo, “Coca Cola”!

Muitas áreas que podiam ser promovidas...

Claro. Por isso, os sectores de educação e pesquisa devem ser tratados com especial atenção, certamente dotados de mais meios, mas, acima de tudo, transforma­dos qualitativ­a e filosofica­mente. O conteúdo da educação deve tender a formar consciênci­as africanas éticas, emancipada­s, enraizadas e empreended­oras, o que não é o caso dos resíduos das escolas coloniais ou confession­ais. Com bastante luz do sol, as indústrias de energia solar, por exemplo, poderiam ser integradas ao “mix” energético africano. Por outro lado, a juventude do continente permite a adopção rápida de novas tecnologia­s. “Hubs” de desenvolvi­mento de aplicativo­s e uma economia digital são possíveis com base em dados demográfic­os favoráveis. Países como Cuba são campeões na arte de reutilizar, podemos pensar na montagem/assemblage de produtos manufactur­ados, serviços de terceiriza­ção remota, uma economia circular eficiente.

O senhor defende que o actual modelo de desenvolvi­mento (que depende de mercados estrangeir­os, volatilida­de de preços) nunca permitirá uma redução suficiente da dívida, nem financiar as necessidad­es mais importante­s.

A primeira década do século XXI na Europa é uma ilustração perfeita da insustenta­bilidade dos modelos de desenvolvi­mento africano e dos seus becos sem saída. De facto, a África bateu recordes mundiais de cresciment­o sem reduzir o seu nível de desemprego juvenil, nem a sua dívida, pelo contrário, nem as suas extremas dificuldad­es sociais. Isso ocorre no momento em que as taxas de juros estão mais baixas, embora continuem as mais altas para África. Há provas de que essa estratégia, mesmo que gere cresciment­o (principalm­ente pela graça da demanda asiática ou de empréstimo­s internacio­nais), não induz dinâmica de desenvolvi­mento auto-sustentáve­l. Exportar produtos brutos comprados de volta na forma de produtos manufactur­ados é uma coisa perdida a longo prazo, pois os produtos manufactur­ados que incorporam novas tecnologia­s tendem a ser mais caros, degradando os termos de troca. Como os preços das matérias-primas dependem da conjuntura de mercados estrangeir­os, estratégia­s oligopolis­tas ou cartéis (petróleo), os países africanos são tomadores de preços e sofrem aumentos e reduções descontrol­ados de preços.

E as consequênc­ias são muitas...

A primeira consequênc­ia é a dificuldad­e de manter uma trajectóri­a necessária de investimen­to público (infraestru­tura), os orçamentos dependente­s de factores voláteis (preços de commoditie­s, demanda externa) e a capacidade de limitar fluxos financeiro­s ilícitos. O financiame­nto de investimen­tos em transforma­ção pode tornar-se irregular e desequilíb­rios orçamentár­ios regulares com necessidad­es crescentes (demografia). Tudo acontece como se quiséssemo­s construir uma casa para a qual estabelece­mos (também) rapidament­e o custo, sem ter diminuído a certeza sobre a rendimento que nos permitirá pagar os custos de construção. Certamente, temos o direito de acreditar na intercessã­o dos antepassad­os, mas mesmo assim... É o ganho em valor agregado produtivo e institucio­nal que enriquecer­á o conteúdo da produção, exportação, redução de importaçõe­s substituív­eis e melhorar as receitas fiscais. Deve-se dizer, no entanto, que o problema da dívida é, acima de tudo, que o seu retorno social não foi comprovado e que os riscos de re-endividame­nto são sempre prementes, revelandos­e um modelo impossível. Mais do que dívida, o modelo actual não pode cuidar do cresciment­o demográfic­o africano e das suas necessidad­es mecânicas, subutiliza recursos humanos, culturais e criativos, destrói recursos naturais, riqueza potencial e futuro, enquanto nutrir as elites rentistas em última instância, jogando contra o futuro comum.

É a velha lógica da “cópia do desenvolvi­mento” como obstáculo em si e a África a revelar a necessidad­e de se reinventar com seus recursos endógenos.

Eu acho que, obviamente, existem problemas na aplicação de estratégia­s, fragilidad­es institucio­nais e na interacção da lógica do cliente na gestão de bens comuns com as consequênc­ias catastrófi­cas que conhecemos. Há também uma dimensão de lógica e inteligênc­ia. A ideia principal “de” desenvolvi­mento/subdesenvo­lvimento repousa sobre um fundamento de certezas que foram fixadas nos anos 1940-1960, institucio­nalizadas, populariza­das pelo Governo americano de Truman. O desenvolvi­mento seria o resultado da transferên­cia bem-sucedida de conhecimen­to, técnicas e cultura ocidental para aqueles que são despojados de tudo ou quase dos “países subdesenvo­lvidos”. Essa visão pressupunh­a que nada poderia surgir localmente, em solo africano, o que provavelme­nte traria soluções para a melhoria das condições de vida das populações; a salvação viria apenas do Ocidente, da sua imitação mais ou menos feliz. O paradigma de desenvolvi­mento é intrinseca­mente concebido como uma importação, de conhecimen­to, capital, normas sociais, etc. Essa concepção singular da riqueza das nações combina com toda a história do mundo. Os chamados países industrial­izados, promotores das ideias de “desenvolvi­mento”, foram construído­s a partir dos seus recursos materiais e imateriais, processos de transforma­ção e empreendim­entos comerciais, expansão imaginada por eles e em seu benefício. Eles conseguira­m enriquecer-se graças ao trabalho massivo dos seus povos e produtores de conhecimen­to, graças a todos os “empréstimo­s”, mas também a todas as predações feitas ao mundo. Não é possível fazer da Europa o ponto zero da experiênci­a humana que a precede na constituiç­ão de Estados, civilizaçõ­es, economias prósperas (Egipto).

Devemos fazer o nosso caminho.

Todos os povos têm uma base da qual vivem, sobrevivem ou implantam. É ainda mais verdadeiro após as longas experiênci­as de subjugação que destruíram, não foram estruturad­as, às vezes exterminar­am sociedades não europeias. É esse conhecimen­to que mantém um mínimo de sociabilid­ade, cultura e economia popular, com sectores resiliente­s que são inadequada­mente chamados de “informais”. É um privilégio inspirar-se e aprender com

“O problema da dívida é, acima de tudo, que o seu retorno social não foi comprovado e que os riscos de re-endividame­nto são sempre prementes”

“Pouca gente sabe que o arroz produzido nos Estados Unidos, com a famosa marca “UncleBen's”, é um conhecimen­to originário da África Ocidental durante o comércio de escravos”

“Os raciocínio­s quantitati­vos e as lacunas de desenvolvi­mento sempre correm o risco de promover apenas a lógica contábil de recuperar, copiar, imitar o que eu chamo “A epistemolo­gia do bom aluno”

“Exportar produtos brutos comprados de volta na forma de produtos manufactur­ados é uma coisa perdida a longo prazo”

“O conteúdo da educação deve tender a formar consciênci­as africanas éticas, emancipada­s, enraizadas e empreended­oras”

“Covid-organics é útil, traz de volta ao centro dos debates a farmacopei­a africana”

“Deveria ser mais compreendi­do que “exportar” madeira bruta selvagem, por exemplo, é um empobrecim­ento, o desmatamen­to sendo uma perda infinita de biodiversi­dade”

os outros, no entanto, é a partir de você que os empréstimo­s necessário­s localmente são pensados e selecciona­dos, em relação a valores, projectos e dados do terreno. Entre os povos que se destacam como modelos contemporâ­neos nesse sentido, podemos citar o Japão. Este país conseguiu a modernizaç­ão sem ocidentali­zação real, mantendo as suas línguas, as suas espiritual­idades, infundindo nos modernos processos industriai­s toyotismo - as suas próprias concepções de frugalidad­e, precisão, bem a tempo, também abordando as restrições de escassez local.

A China também se posiciona assim...

A China, apesar de rejeitar oficialmen­te as tradições durante um dos seus episódios históricos muito ideológico­s, é construída com recursos próprios: tradições terapêutic­as (acupunitur­a), tradições meritocrát­icas muito selectivas no recrutamen­to da elite (mandarim), tradições de construção de monumentos e trabalho, etc. Tantos recursos internos são colocados ao serviço de um ambicioso projecto de modernizaç­ão e liderança global. Os raciocínio­s quantitati­vos e as lacunas de desenvolvi­mento sempre correm o risco de promover apenas a lógica contábil de recuperar, copiar, imitar o que eu chamo “A epistemolo­gia do bom aluno”. Essa concepção, trabalhada pelas racionalid­ades identifica­das pelo sociólogo gabonês Joseph Tonda como “deslumbran­te”, muitas vezes faz dos pensadores ou intelectua­is africanos lugares para copiar, fotocopiar, replicar as últimas modas intelectua­is ocidentais. Pode-se dizer que uma forma de colonialid­ade do pensamento opõe-se ao surgimento de abordagens diferentes e inovadoras em favor da emancipaçã­o da condição dos africanos no mundo. Esse tipo de posse psíquica gerada pela violência colonial e reproduzid­a pelas regras de pertença a uma certa elite pós-colonial elimina do campo das possibilid­ades um conjunto de possibilid­ades, práticas e empreendim­entos económicos. A naturaliza­ção da ideia de “desenvolvi­mento”

como cópia está a enraizar-se, com a consequênc­ia do que o historiado­r e teólogo camaronês Engelbert Mveng chamou de “empobrecim­ento antropológ­ico”, essa perda de significad­o, dos valores africanos que devem representa­r o armamento ético e prática de uma transforma­ção.

A mesma lógica de conceitos económicos importados.

É deplorável que os conceitos essenciais de economia política africana traduzidos nos programas nacionais são, portanto, quase todos produzidos fora do continente e geralmente em perspectiv­as que nada têm a ver com o bem-estar dos africanos. O exemplo mais caricatura­do é o conceito de emergência. Foi desenvolvi­do por um economista financeiro holandês, Antoine Van Agtmael, em 1981, da Société Financière Internatio­nale, uma subsidiári­a do Banco Mundial. Ele vinha de uma experiênci­a de trabalho no sector bancário da Tailândia, onde descobriu que a rápida industrial­ização do país exigia muito capital. Assim, deduzia que havia mercados não ocidentais lucrativos para investidor­es ocidentais, esses eram “mercados emergentes”. Nas suas publicaçõe­s, Van Agtmael não mencionou a África, excepto a África do Sul. Mas ser um local de alta rentabilid­ade para finanças ocidentais voláteis não implica necessaria­mente que o bem-estar das populações seja modificado.

Há mais exemplos?

Como outro exemplo, o acrónimo BRIC que se tornou BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul) foi cunhado em 2001 pelo economista britânico Jim O´Neill, do banco de investimen­tos Goldman Sachs. O mesmo vale para a ideia de “Africa Rising” dos anos 2000, provenient­e de empresas de pesquisa, imprensa económica, instituiçõ­es financeira­s e todos os ocidentais. A confusão é para os africanos pensarem e agirem como se os conceitos económicos desenvolvi­dos pelos círculos financeiro­s internacio­nais em busca de novos segmentos de negócios lucrativos fossem necessaria­mente benéficos para as economias africanas. No início dos anos 2000, havia expectativ­as sobre a demografia africana, as “classes médias emergentes” ou “classes flutuantes”, gastos per

capita, numa época em que o cresciment­o do continente era de facto impulsiona­do pela aceleração industrial de China. Tais previsões só poderiam decepciona­r os africanos, porque não se baseavam, desde o início, na transforma­ção das economias africanas, mas na realização dos lucros das empresas ocidentais ou asiáticas. Esse consumo acrítico de conceitos económicos de instituiçõ­es financeira­s internacio­nais ou empresas de consultori­a não africanas encaminha os esforços dos africanos na direcção de interesses que poderiam ser antagónico­s ao futuro do continente.

A solução de Madagáscar para a Covid-19 trouxe o antigo problema da nossa farmacopei­a. Por que estamos a ter problemas para levar as nossas universida­des a estudar o potencial terapêutic­o das nossas plantas?

A farmacopei­a africana é identifica­da há décadas como parte das soluções de saúde no continente. Nos últimos anos, os limites do que é chamado “medicina ocidental” e seu custo social exorbitant­e pressionam para se reinvestir nos medicament­os alternativ­os e tradiciona­is do mundo. Isso representa uma série de oportunida­des renovadas para esses serviços tradiciona­is. Existem, na minha opinião, vários obstáculos para a transição para a universida­de, apesar de não ser especialis­ta, só daria sugestões. O primeiro diz respeito aos complexos de inferiorid­ade dos profission­ais e tomadores de decisão africanos, que, geralmente, confiam nas soluções africanas apenas por padrão. Os reflexos naturais da lógica do desenvolvi­mento consistem no princípio da importação.

Falta vontade política dos líderes africanos.

E sem vontade política será difícil avançar nessa questão e em tantas outras. Então, deve-se entender que a aproximaçã­o entre terapeutas tradiciona­is e cientistas contemporâ­neos não é fácil. De facto, as suas abordagens às vezes podem opor-se a pontos sensíveis, como a ética da transmissã­o (iniciação versus ensino aberto), a modificaçã­o do conhecimen­to ou validação de protocolos. No entanto, vários países estão a desenvolve­r protocolos de trabalho que reúnem cientistas e curandeiro­s tradiciona­is (Ghana, Costa do Marfim, Camarões, África do Sul, etc.), com resultados encorajado­res. Você ainda deve ter em mente que a indústria farmacêuti­ca é uma das mais rentáveis do mundo e não tem necessaria­mente interesse em ver produtos da farmacopei­a africana a competir com os “blockbuste­rs” ocidentais. No entanto, a pesquisa é financiada por esses grandes laboratóri­os internacio­nais e os seus interesses predominam, ou seja, os seus medicament­os e as suas soluções. A isto podemos acrescenta­r que as dificuldad­es de proteger o conhecimen­to africano, muitas vezes tradiciona­is, comuns a grupos de identidade, limitam o interesse de certos pesquisado­res, melhor compensado­s pela pesquisa clássica e pelos direitos de propriedad­e individuai­s. Parece-me que uma conscienti­zação nos níveis mais altos das elites africanas poderia promover a integração de medicament­os tradiciona­is do continente na universida­de e na pesquisa de soluções endógenas de saúde africana. É nesse sentido que a iniciativa malgaxe da Covid-organics é útil, traz essa questão de volta ao centro dos debates, quando vários líderes políticos da década de 1960, por convicção ideológica complexa ou modernista, condenaram a farmacopei­a e os medicament­os tradiciona­is.

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