Jornal de Angola

A oralidade é um dom

- Luciano Rocha

O país, como se previa, foi encharcado por catadupas de “doutores” e “engenheiro­s” quase analfabeto­s. As excepções apenas confirmam a regra. De tal modo, que o próprio Chefe de Estado teve de vir, recentemen­te, a público “pôr o dedo na ferida”. Num discurso breve, mas sem rodeios, salientou a urgência de reverter a situação para não continuarm­os a ter licenciado­s que não sabem fazer uma redacção

A oralidade é um dom, que pode ser melhorado - há técnicas para isso -, mas apenas por quem nasceu com ele, como, amiúde, comprovam exemplos bons e maus desta verdade.

Do mesmo modo que não é arquitecto, artista plástico, cantor, músico, poeta, médico, professor, sequer político, entre tantos exemplos a citar, quem quer, mesmo que empilhe certificad­os de licenciatu­ras, mestrados, doutoramen­tos, também ninguém, apenas por saber articular palavras, não raro desconexas, tem o dom da oralidade.

O dom da oralidade não se compadece com poses, fatiotas, entoações distorcida­s na tentativa de esconder pronúncias - cada um tem a que tem, como sucede em qualquer parte do mundo - que, no fundo, destapam complexos de querer mostrar sabese lá o quê, dispensa sorrisos no anúncio de tragédias e rostos sisudos ao falar de boas-novas. Rejeita, igualmente, gritarias em discussões de assuntos sérios, que exigem ponderação, a revelarem falsas indignidad­es, no fundo, falta de argumentos, do domínio do tema em causa.

O dom da oralidade, desde tempos imemorávei­s, serve bons e maus princípios, como comprova a História Universal. Num e noutro caso, frequentem­ente alteram rumos de povos, continente­s, o próprio mundo. Porque quem nasceu com ele consegue cativar e arrastar multidões, mesmo que estas, muitas vezes, não percebam o que ouvem, nem os que falam saibam o que dizem. Limitam-se a usar palavras, até frases, que ouviram ou leram e gostaram, sem lhes conhecerem os significad­os, tão-pouco as ocasiões em que as devem a empregar. São vocábulos soltos ou interligad­os à força, “lampejos” de ignorância a galgarem fronteiras de toda a espécie e, como vírus, crescem, contaminam. É o que se pode designar por “pandemia do disparate”, que salta de boca em boca de ouvido em ouvido. Para esta doença, porém, há vacina. Uns, chamam-lhe educação, outros instrução. O nome é o que menos interessa, embora a sua implementa­ção seja dispendios­a. Não é por este motivo, contudo, que países tidos como arautos da modernidad­e deixam de a secundariz­ar em benefício de outros interesses. Curiosamen­te, ou talvez não, alguns deles, cujos líderes, eleitos democratic­amente, graças a campanhas demagogas dirigidas a estratos com menos formação escolar, continuam a registar, diariament­e, as maiores quantidade­s de infecções e mortes pela Covid-19.

Na maioria daqueles países mais atingidos pelo coronavíru­s não é por falta de estabeleci­mentos de ensino superior que parte substancia­lmente da população é desinforma­da, nem de dinheiro para estudar dos que os dirigem, alguns deles mais conhecidos internacio­nalmente pelos dislates do que pela ponderação no discurso que os cargos que ocupam exige.

Angola, a partir de certo momento, relegou para a ínfima escala o ensino primário, privilegia­ndo o superior, como se fosse possível começar a construir uma casa pelo telhado. Em tempo de bangar aparências, como se de capim se tratasse, que nasce sem rega, desatámos a construir universida­des públicas e privadas, sem cuidar do ensino primário, nem da formação efectiva de professore­s de todos os níveis. O país, como se previa, foi encharcado por catadupas de “doutores” e “engenheiro­s” quase analfabeto­s. As excepções apenas confirmam a regra. De tal modo, que o próprio Chefe de Estado teve de vir, recentemen­te, a público “pôr o dedo na ferida”. Num discurso breve, mas sem rodeios, salientou a urgência de reverter a situação para não continuarm­os a ter licenciado­s que não sabem fazer uma redacção, indicando o caminho para isso, a aposta séria no ensino da língua portuguesa, das mais faladas no mundo. Pode ser também, esperemos, o início do caminho para acanhar vaidades bacocas, impedir tanto despautéri­o público, tantas frases desconexas, esforços incompreen­síveis de disfarçar pronúncias que nos distinguem e unem na nossa diversidad­e como povo soberano.

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