“No meio do caminho tinha uma pedra…”
O insigne académico camaronês Achille Mbembe – historiador, filósofo, teórico político e professor universitário – referiu que “a era do humanismo está a chegar ao fim” e antevê, para a primeira metade do século XXI, a continuação do crescimento das desigualdades e, consequentemente, a emergência de mais conflitos sociais em todo o mundo. Já não, como anteriormente, a coberto da luta de classes, mas, cada vez mais, sob a forma de racismo, ultranacionalismo, sexismo, rivalidades étnicas e religiosas, xenofobia, homofobia e outras paixões mortais. Tal como afirma, “um outro longo e mortal jogo começou e o principal choque a ocorrer no futuro já não será entre religiões ou civilizações, mas entre a democracia liberal e o capitalismo neoliberal, entre o governo das finanças e o governo do povo, entre o humanismo e o niilismo.”
Desde o final da II Guerra Mundial, passando pela Guerra-Fria, pelo longo percurso para a descolonização e, posteriormente, pela destruturação do Bloco do Leste, o mundo, tal como o conhecemos, já não existe. Actualmente, de acordo com Mbembe, há uma ameaça civilizacional provocada pelo fosso, cada vez mais profundo, entre a democracia e o capitalismo neoliberal. Desde o período do pós-guerra, o mundo do capital alcançou, a nível planetário, a sua hegemonia e se transformou na primeira “teologia secular global”. Para tal, estabeleceu uma parceria estratégica entre a religião e a tecnologia e se alicerçou no poder militar e no poder tecnológico.
Assim se criou a “teologia do mercado”, uma expressão inicialmente utilizada pelo escritor e futurista norte-americano Alvin Toffler, uma linha de pensamento próxima da de Ignacio Ramonet, quando atesta que a adesão dos países às teses neoliberais parece poder interpretar-se como a substituição de regimes totalitários por regimes “globalitários”. Os dogmas do partido único deram lugar aos dogmas da globalização e do pensamento único, que não admitem nenhuma outra política económica, subordinam os direitos sociais do cidadão à competitividade e delegam nos mercados financeiros a direcção total das actividades da sociedade dominada.
Afirma-se que um director executivo de um conhecido banco comercial nos EUA, vulgo CEO (Chief Executive Officer), deu que pensar aos economistas, quando procedeu às seguintes afirmações:
- «Um ciclista é um desastre para a economia do país. Não compra automóvel, não pede empréstimo para comprar automóvel, não faz seguro automóvel, não compra combustível, não manda o automóvel à revisão nem à oficina para reparações. Não usa estacionamento pago, não causa acidentes graves, não precisa de auto-estradas com várias faixas e portagens, não fica obeso…».
- «Sim, e isso não é bom?». Questionou um dos economistas.
- «Não, é uma maldição». Respondeu prontamente o director executivo, justificando deste modo esta sua pronta resposta:
- «As pessoas saudáveis não são necessárias à economia. Não compram medicamentos, não vão aos hospitais, nem a médicos, não agregam nada ao PIB do país. Pelo contrário, cada nova loja do McDonald cria pelo menos 30 empregos, 10 cardiologistas, 10 dentistas, 10 especialistas em perda de peso, sem contar com as pessoas que trabalham no McDonald. Então? Será melhor um ciclista ou um McDonald?».
Para Achille Mbembe, a lógica do capitalismo financeiro é incompatível com a essência da democracia liberal, uma vez que, entre outros aspectos, coloca sob ameaça o culto à ciência, à tecnologia e à razão. Na actual “teologia do mercado”: o conhecimento será definido como “conhecimento para o mercado e o próprio mercado será re-imaginado como o mecanismo principal para a validação da verdade; como os mercados transformam-se, cada vez mais, em estruturas e tecnologias algorítmicas, o único conhecimento útil será algorítmico e, em vez de pessoas com corpo, história e carne, inferências estatísticas serão tudo o que conta; as estatísticas e outros dados importantes serão derivados principalmente da computação e como resultado da confusão de conhecimento, tecnologia e mercados, o desprezo se estenderá a qualquer pessoa, que não tiver nada para vender”.
Daí que Achille Mbembe afirme que “os valores espirituais, especialmente para os pobres, estejam intrinsecamente associados ao desejo de poderem vir a alcançar um rápido enriquecimento, como o mais importante para as suas vidas, sem que, em última instância, haja quem respeite a forma como se poderá obter riqueza”. O próprio sistema neoliberal, isento de um quadro axiológico de referência e em contexto de anomia social, empurra os cidadãos para a corrupção, que, em teoria, toda a gente afirma, que temos o dever e a obrigação de combater.
O actual estado de pandemia da Convid-19, agravado pela brusca descida do preço do barril de petróleo, para além de uma enorme tragédia humanitária é, também, uma enorme catástrofe económica, com consequências finais ainda incalculáveis. Com a actual situação de pandemia, o FMI prevê, para a África Subsaariana, uma recessão de 3,2 por cento, que atira quase 40 milhões de pessoas para a pobreza extrema, o que representa 10 anos de desenvolvimento. A Covid-19 “minou os esforços das reformas, exacerbando a situação macroeconómica que já era frágil, limitando as perspectivas para uma rápida recuperação económica”.
Entre os 54 países africanos, o Relatório Anual do Banco Africano de Desenvolvimento coloca Angola em 43º lugar. A nível mundial e em termos de preparação do sistema de saúde (Índice Global de Segurança Sanitária), entre 195 países, situa Angola em 170º. Este relatório alerta ainda para o facto de “as perspectivas sombrias de crescimento, num contexto em que o país entra no quinto ano de recessão, vão aumentar os desafios sociais num país com 32 por cento de desemprego”.
Como diria Carlos Drumond de Andrade, “no meu do caminho tinha uma pedra (…)”.
O actual estado de pandemia da Convid-19, agravado pela brusca descida do preço do barril de petróleo, para além de uma enorme tragédia humanitária é, também, uma enorme catástrofe económica, com consequências finais ainda incalculáveis. Com a actual situação de pandemia, o FMI prevê, para a África Subsaariana, uma recessão de 3,2 por cento, que atira quase 40 milhões de pessoas para a pobreza extrema, o que representa 10 anos de desenvolvimento