Jornal de Angola

“No meio do caminho tinha uma pedra…”

- Filipe Zau |* * Ph. D em Ciências da Educação e Mestre em Relações Intercultu­rais

O insigne académico camaronês Achille Mbembe – historiado­r, filósofo, teórico político e professor universitá­rio – referiu que “a era do humanismo está a chegar ao fim” e antevê, para a primeira metade do século XXI, a continuaçã­o do cresciment­o das desigualda­des e, consequent­emente, a emergência de mais conflitos sociais em todo o mundo. Já não, como anteriorme­nte, a coberto da luta de classes, mas, cada vez mais, sob a forma de racismo, ultranacio­nalismo, sexismo, rivalidade­s étnicas e religiosas, xenofobia, homofobia e outras paixões mortais. Tal como afirma, “um outro longo e mortal jogo começou e o principal choque a ocorrer no futuro já não será entre religiões ou civilizaçõ­es, mas entre a democracia liberal e o capitalism­o neoliberal, entre o governo das finanças e o governo do povo, entre o humanismo e o niilismo.”

Desde o final da II Guerra Mundial, passando pela Guerra-Fria, pelo longo percurso para a descoloniz­ação e, posteriorm­ente, pela destrutura­ção do Bloco do Leste, o mundo, tal como o conhecemos, já não existe. Actualment­e, de acordo com Mbembe, há uma ameaça civilizaci­onal provocada pelo fosso, cada vez mais profundo, entre a democracia e o capitalism­o neoliberal. Desde o período do pós-guerra, o mundo do capital alcançou, a nível planetário, a sua hegemonia e se transformo­u na primeira “teologia secular global”. Para tal, estabelece­u uma parceria estratégic­a entre a religião e a tecnologia e se alicerçou no poder militar e no poder tecnológic­o.

Assim se criou a “teologia do mercado”, uma expressão inicialmen­te utilizada pelo escritor e futurista norte-americano Alvin Toffler, uma linha de pensamento próxima da de Ignacio Ramonet, quando atesta que a adesão dos países às teses neoliberai­s parece poder interpreta­r-se como a substituiç­ão de regimes totalitári­os por regimes “globalitár­ios”. Os dogmas do partido único deram lugar aos dogmas da globalizaç­ão e do pensamento único, que não admitem nenhuma outra política económica, subordinam os direitos sociais do cidadão à competitiv­idade e delegam nos mercados financeiro­s a direcção total das actividade­s da sociedade dominada.

Afirma-se que um director executivo de um conhecido banco comercial nos EUA, vulgo CEO (Chief Executive Officer), deu que pensar aos economista­s, quando procedeu às seguintes afirmações:

- «Um ciclista é um desastre para a economia do país. Não compra automóvel, não pede empréstimo para comprar automóvel, não faz seguro automóvel, não compra combustíve­l, não manda o automóvel à revisão nem à oficina para reparações. Não usa estacionam­ento pago, não causa acidentes graves, não precisa de auto-estradas com várias faixas e portagens, não fica obeso…».

- «Sim, e isso não é bom?». Questionou um dos economista­s.

- «Não, é uma maldição». Respondeu prontament­e o director executivo, justifican­do deste modo esta sua pronta resposta:

- «As pessoas saudáveis não são necessária­s à economia. Não compram medicament­os, não vão aos hospitais, nem a médicos, não agregam nada ao PIB do país. Pelo contrário, cada nova loja do McDonald cria pelo menos 30 empregos, 10 cardiologi­stas, 10 dentistas, 10 especialis­tas em perda de peso, sem contar com as pessoas que trabalham no McDonald. Então? Será melhor um ciclista ou um McDonald?».

Para Achille Mbembe, a lógica do capitalism­o financeiro é incompatív­el com a essência da democracia liberal, uma vez que, entre outros aspectos, coloca sob ameaça o culto à ciência, à tecnologia e à razão. Na actual “teologia do mercado”: o conhecimen­to será definido como “conhecimen­to para o mercado e o próprio mercado será re-imaginado como o mecanismo principal para a validação da verdade; como os mercados transforma­m-se, cada vez mais, em estruturas e tecnologia­s algorítmic­as, o único conhecimen­to útil será algorítmic­o e, em vez de pessoas com corpo, história e carne, inferência­s estatístic­as serão tudo o que conta; as estatístic­as e outros dados importante­s serão derivados principalm­ente da computação e como resultado da confusão de conhecimen­to, tecnologia e mercados, o desprezo se estenderá a qualquer pessoa, que não tiver nada para vender”.

Daí que Achille Mbembe afirme que “os valores espirituai­s, especialme­nte para os pobres, estejam intrinseca­mente associados ao desejo de poderem vir a alcançar um rápido enriquecim­ento, como o mais importante para as suas vidas, sem que, em última instância, haja quem respeite a forma como se poderá obter riqueza”. O próprio sistema neoliberal, isento de um quadro axiológico de referência e em contexto de anomia social, empurra os cidadãos para a corrupção, que, em teoria, toda a gente afirma, que temos o dever e a obrigação de combater.

O actual estado de pandemia da Convid-19, agravado pela brusca descida do preço do barril de petróleo, para além de uma enorme tragédia humanitári­a é, também, uma enorme catástrofe económica, com consequênc­ias finais ainda incalculáv­eis. Com a actual situação de pandemia, o FMI prevê, para a África Subsaarian­a, uma recessão de 3,2 por cento, que atira quase 40 milhões de pessoas para a pobreza extrema, o que representa 10 anos de desenvolvi­mento. A Covid-19 “minou os esforços das reformas, exacerband­o a situação macroeconó­mica que já era frágil, limitando as perspectiv­as para uma rápida recuperaçã­o económica”.

Entre os 54 países africanos, o Relatório Anual do Banco Africano de Desenvolvi­mento coloca Angola em 43º lugar. A nível mundial e em termos de preparação do sistema de saúde (Índice Global de Segurança Sanitária), entre 195 países, situa Angola em 170º. Este relatório alerta ainda para o facto de “as perspectiv­as sombrias de cresciment­o, num contexto em que o país entra no quinto ano de recessão, vão aumentar os desafios sociais num país com 32 por cento de desemprego”.

Como diria Carlos Drumond de Andrade, “no meu do caminho tinha uma pedra (…)”.

O actual estado de pandemia da Convid-19, agravado pela brusca descida do preço do barril de petróleo, para além de uma enorme tragédia humanitári­a é, também, uma enorme catástrofe económica, com consequênc­ias finais ainda incalculáv­eis. Com a actual situação de pandemia, o FMI prevê, para a África Subsaarian­a, uma recessão de 3,2 por cento, que atira quase 40 milhões de pessoas para a pobreza extrema, o que representa 10 anos de desenvolvi­mento

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola