Jornal de Angola

400 mil empregadas vivem em casa dos patrões em Hong Kong

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Sem descanso ou privacidad­e. Muitas vezes a dormir no chão, na banheira ou num sofá. Sem vida própria e por vezes alvo de abusos vários. Eis a realidade de cerca de 400 mil mulheres e alguns homens em Hong Kong. São ajudantes - uma espécie de empregada doméstica interna - obrigadas, por lei e contrato, a morar em casa dos patrões. O que implica estar 24 horas disponível e ser empregada doméstica, chef pessoal, babá e cuidadora dos mais velhos e deficiente­s.

Estamos a falar de uma indústria que move 390 mil pessoas, a maior parte das Filipinas e da Indonésia. Elas representa­m 10% da força de trabalho da cidade - apenas 1% dos ajudantes são homens - e são parte integrante da economia e da vida quotidiana de Hong Kong, mas são também uma das comunidade­s mais vulnerávei­s, mais agora com a pandemia da Covid-19.

Segundo um estudo da organizaçã­o Mission For Migrant Workers, só no ano passado, dos 5023 ajudantes que pediram ajuda, 15% admitiu ter sido abusado fisicament­e durante o emprego. E 2% relataram ter sido agredido ou assediado sexualment­e. São poucos os casos qu acabam nos tribunais.

Em 2015, um julgamento abalou a sociedade de Hong Kong. Uma dona de casa foi considerad­a culpada e condenada a seis anos de prisão, por abusar de sua ajudante, uma mulher de 23 anos, da Indonésia. Além de a espancar regularmen­te com um cabide, obrigava-a a dormir no chão, apenas cinco horas por noite, e só lhe dava comida de vez em quando, além de ameaçar de morte os pais dela, caso contasse a alguém.

Uma dessas mulheres, uma cidadã filipina, contou à CNN que sofreu abusos físicos e emocionais tão torturante­s que ela quebrou o contrato e fugiu ao fim de seis meses. Chegou a dormir num colchão no chão de uma igreja até encontrar novo emprego e nova casa. Segundo ela, os maus tratos são comuns, mas tomar medidas legais seria financeira­mente e emocionalm­ente desgastant­e e poderia potencialm­ente impedir futuros empregador­es.

O medo leva quase sempre a melhor, pois, se abandonare­m o emprego antes que o contrato de dois anos termine, têm 14 dias para encontrar outro ou deixar Hong Kong, a menos que tenham uma autorizaçã­o do Departamen­to de Imigração. Esta situação já levou várias organizaçõ­es humanitári­as, incluindo a Amnistia Internacio­nal e o Comité de Direitos Humanos das Nações Unidas, a pedir ao Governo de Hong Kong que revogue essa regra de 14 dias, argumentan­do que desencoraj­a os ajudantes de deixarem situações abusivas ou explorador­as.

E foi por isso que, em 2016, esta cidadã filipina solicitou em tribunal uma revisão judicial da regra de permanênci­a no local de trabalho (morar com o patrão), alegando que é discrimina­tória e aumenta o risco da violação dos direitos fundamenta­is dos ajudantes. Mas há muitos trabalhado­res que preferem manter a norma, pois assim ganham mais e enviam mais dinheiro para as famílias. Além disso, a alternativ­a seria, em muitos casos, morar em pensões ilegais.

“Eu quero liberdade - a liberdade de escolha. Por que não tentar obter liberdade tanto para o empregador, quanto para o empregado?”, justificou a cidadã filipina, que viu o tribunal negarlhe a acção em 2018. Ela recorreu e aguarda que o processo avance.

Em 2003, passou a ser obrigatóri­o morar no local de trabalho. Segundo as entidades governamen­tais, isso resolvia o problema dos patrões, mas também o dos empregados, emigrantes sem local para viver. E apesar da lei dizer que os empregador­es devem fornecer “acomodação adequada” e com “privacidad­e razoável”, há muitos a dormir no chão, na banheira ou num sofá.

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DR Trabalho doméstico obriga a sacrifício­s de vária ordem

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