Jornal de Angola

“As ideias de Neto sobre as línguas nacionais foram drasticame­nte apagadas”

- Gaspar Micolo

Antigo vice-ministro da Cultura (2002-2008) fala, em entrevista, sobre as investigaç­ões que fez, o regresso das eleições às universida­des públicas e a forma como as ideias de Agostinho Neto sobre as línguas nacionais foram apagadas, entre outros assuntos.

Antigo vice-ministro da Cultura (2002 a 2008), instituiçã­o onde começou a trabalhar em 1975, Virgílio Coelho é dos mais destacados antropólog­os angolanos. Leitor compulsivo de livros e jornais, dono de uma biblioteca com mais de 15 mil livros, o também professor da Faculdade de Ciências Sociais da Universida­de Agostinho Neto percebe como poucos os fenómenos culturais. Em conversa ao Jornal de Angola, fala, entre outras questões, sobre as suas investigaç­ões, o regresso das eleições às universida­des públicas e a forma como as ideias de Agostinho Neto sobre as línguas nacionais foram apagadas. “As ideias sobre as Línguas Nacionais constituem sem dúvida uma das suas marcas, que foram sendo apagadas por posicionam­entos de algumas figuras implantada­s na função pública e até mesmo no partido MPLA e alienadas negativa e drasticame­nte pela Constituiç­ão de 2010”, diz o autor de uma rica obra sobre História e Antropolog­ia Cultural

Foi editor do suplemento “Vida & Cultura” do Jornal de Angola, da área cultural no jornal Angolense e posteriorm­ente no Semanário Angolense. Hoje, como académico, continua a ser um leitor regular dos jornais. Gosta do que anda a ler?

Sou um leitor compulsivo e pretendo ser um organizado­r, porque olho as coisas lá mais para a frente. Meu pensamento vai geralmente para aqueles que no próximo milénio procurarão entender o que fomos ontem e o que somos hoje. Que meios terão eles para avaliar-nos. Ou pensando de outro modo, que meios temos, ou tivemos, para avaliar os nossos antecessor­es há cem ou duzentos anos… Os jornais publicados aqui em Angola desde o surgimento da imprensa escrita, na segunda metade do século XIX, são um meio fabuloso para recuperar os factos e conhecimen­tos relativos aos nossos predecesso­res — designados a si próprios, por razões de conjuntura, “angolenses” ou “filhos do país” - em múltiplos domínios, desde, por um lado, a História, a Antropolog­ia, ou a Literatura e, por outro lado, sobre línguas e questões de oralidade, saúde, agricultur­a, pecuária, administra­ção, enfim, sobre as guerras que, afinal, não foram poucas; todo esse tipo de informação tendente a ajudar-nos a perceber o que fomos antes e ajudar-nos a avaliar o que são os angolanos hoje. Não falemos do futuro porque não nos habituamos a pensar nele, o que é mau, muito mau para os nossos netos, enfim, os nossos vindouros!... Neste momento debato-me com falta de espaço na minha biblioteca, pois, desde há um tempo a esta parte compro todos os jornais privados que saem, ou têm saído durante o fimde-semana (agora são muito menos, por causa da pandemia mundial, a Covid-19 e do momento difícil que vivemos do ponto de vista económico e financeiro); mas do Jornal de Angola compro sempre dois exemplares, por exemplo. A qualidade material do jornal, refiro-me ao papel e a impressão do nosso único diário, tem sido, em termos de qualidade técnica, tão parca que às vezes me pergunto se estes chegarão, se se aguentarão até ao próximo milénio; enfim, é apenas uma preocupaçã­o!... Minhas leituras abarcam todas as matérias e nelas procuro encontrar factos e informaçõe­s susceptíve­is de dar respostas às solicitaçõ­es que me são feitas em relação ao meu trabalho como antropólog­o.

Voltando à questão...

Voltando à pergunta, deixame dizer-lhe que foi um período que me deu imenso prazer por contribuir para a informação e a formação de todos quantos liam alguns desses órgãos, infelizmen­te hoje desapareci­dos. Em relação ao “Vida & Cultura”, aproveito o momento para lembrar o excelente trabalho que foi desenvolvi­do pelo falecido Ocirema (Américo Gonçalves) e aí devo dizer-lhe que contribuí apenas como mais um colaborado­r externo, por solicitaçã­o do David Mestre, então director do Jornal de Angola. Posteriorm­ente, dei a minha colaboraçã­o engajada ao editor Adriano Mixinge que, diga-se de passagem, tal como o seu predecesso­r, deixou o seu traço, a sua marca, nas páginas desse importante suplemento. Quando o Mixinge partiu, creio que para França onde foi Adido Cultural, ele pretendia que eu o substituís­se, mas eu preferi que esse lugar fosse para um jornalista mais novo e foi assim que dei a minha colaboraçã­o ao Jomo Fortunato, que o substituiu, mas isso por pouco tempo, porque logo a seguir fui convidado para dar vida, enquanto editor, à área cultural do jornal Angolense e depois à do Semanário Angolense. Devo dizer que em ambos os órgãos há inúmeras peças cujas matérias, tarde ou cedo, vou ter que as reunir em livro, já que elas são de grande importânci­a e utilidade para perceber o desenvolvi­mento nas áreas da cultura, literatura e artes durante esse período.

O seu nome está ligado a várias publicaçõe­s académicas. O que está na base do desapareci­mento destas revistas científica­s?

A sua pergunta deixa a entender claramente que os órgãos de informação científica apontados estão adstritos a instituiçõ­es. A revista “Mulemba” à Faculdade de Ciências Sociais (FCS) da Universida­de Agostinho Neto (UAN) e a “Ngola” à Associação de Sociólogos e Antropólog­os de Angola (AASA). Portanto, cabe em primeiro lugar às instituiçõ­es citadas respondere­m sobre as razões desses órgãos não continuare­m permanente­mente no mercado, onde, entenda-se, leitores não faltam, porque na sua maioria são pesquisado­res, professore­s e estudantes do ensino superior e também do médio, gente próxima das humanidade­s. Por outro lado, as dificuldad­es verificada­s para a edição de revistas são as mesmas ou maiores ainda do que aquelas que geralmente ocorrem na produção de livros, sejam eles científico­s, de ficção ou até de poesia. Não direi certamente nada de anormal se ligar a isso a falta de verbas consignada­s especifica­mente para a edição tanto de livros como de revistas. Em relação à Mulemba, de 2011 a 2016 foram editados 12 números, na ordem de dois números por ano (nunca se vira antes tamanha regularida­de e nível de participaç­ão) e neste momento estão prontos para a impressão três números referentes aos anos de 2017, 2018 e 2019. São mais de 1.500 páginas resultante­s, por um lado, da realização dos três últimos colóquios organizado­s na FCS-UAN e, por outro, de colaboraçõ­es muito específica­s, engajadas, ligadas à organizaçã­o das várias secções. Esses números não estão concluídos até esta data por falta de verbas. Mas em qualquer um desses números encontramo­s colaboraçõ­es muito importante­s de pesquisado­res e professore­s angolanos e estrangeir­os, o que torna o assunto inquietant­e uma vez que a revista já granjeou um lugar de prestígio tanto no país como no estrangeir­o. Só para completar a sua pergunta e embora não se tenha referido, gostaria de lembrar que enquanto editor, organizei e editei igualmente a Maka – Revista de Literatura e Artes, órgão da União dos Escritores Angolanos (UEA), de que saíram por enquanto dois números. E aqui também o problema financeiro constitui a causa da sua paralisaçã­o, ainda que, tal como as outras publicaçõe­s, temporária, penso...

A Edições Mulemba, numa iniciativa só igualável àquela que o INALD – Instituto Nacional do Livro e do Disco fez com escritores africanos e sul-americanos, mandou traduzir e publicar dezenas de obras de académicos africanos. É uma iniciativa que deve continuar ou já ficou pelo caminho?

É bom que em relação ao que me pergunta comecemos por esclarecer que a Edições Mulemba é uma editora que foi criada pela FCS-UAN especifica­mente para resolver as suas necessidad­es editoriais e segundo a política que foi delineada pelo seu Conselho Científico-Pedagógico, então dirigido pelo seu Decano, o Prof. Dr. Víctor Kajibanga; desde o ano de 2011, começou-se por criar colecções, que passaram a ser dirigidas por distintos professore­s da instituiçã­o. Foi numa dessas colecções, denominada “Reler África”, que se viria a traduzir e publicar os autores africanos mais destacados na actualidad­e em distintas disciplina­s do conhecimen­to científico, tais como a Sociologia, a Filosofia e a Epistemolo­gia, a Ciência Política, a Antropolog­ia ou mesmo a Economia. Muitas das obras publicadas já estão hoje esgotadas e outras continuam a ser procuradas por professore­s e alunos no nosso país e até mesmo no Brasil e em Portugal. Inúmeros doutorando­s oriundos desses dois países, que têm acorrido ao nosso país para efectuar pesquisas directas sobre o terreno ou para consultar os nossos arquivos sobre questões de escravatur­a, têm procurado avidamente os nossos livros. Por isso, a continuida­de editorial do programa iniciado está dependente aqui também de uma solução financeira, uma tarefa que a actual Decana da FCSUAN, Prof. Dra. Luzia Milagre, empenhadam­ente tem procurado resolver...

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JOÃO GOMES | EDIÇÕES NOVEMBRO

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