De Ambundu para Akwakimbundu
É verdade… Qualquer um desses dois trabalhos académicos e alguns artigos produzidos nessa época, resultaram geralmente de opções de momento e estiveram por isso geralmente sujeitos a questões de tempo. Como sabe, quando se trabalha em períodos de tempo fechados, que nos impõem um programa de trabalho e uma calendarização, com a intenção de os defender, não há muito tempo para reflectir entre os dados e informações recebidos e a busca de soluções adequadas em função das nossas opções e conhecimentos no momento. Uma coisa que aprendi com um dos meus mestres, foi que não tendo respostas convincentes para este ou aquele assunto, deve-se interrogar e procurar delegar o assunto para uma outra fase, em que se espera ter tempo e possibilidade de meditar e encontrar respostas que julgamos mais convincentes e adequadas sobre o assunto. É o que hoje vai acabando por ocorrer, porque sendo os dados que se possui hoje mais precisos e mais esclarecedores, deixei de ter em conta a terminologia “Ambundu”, senão como um referencial histórico indevido, recebido desde o século XV, cujo significado não cabe no pensamento das populações que integram a comunidade que fala a língua kimbundu, uma vez que, na noção de povo e de pertença social a uma determinada comunidade, ninguém escolhe uma palavra com significado entendido como pejorativo, para não dizer, atormentador, para se autonomear. Este termo, tanto quanto outros, utilizados indevidamente durante a época colonial e mesmo até após a nossa Independência, têm que ser estudados e aclarados. Em função dos novos dados, deixei de utilizar o termo “Ambundu” e passei a utilizar um novo referencial, sociológico e linguístico: Akwakimbundu. Eu espero abordar com substância, essa e outras questões na minha próxima obra que tenho em preparação…
Defendeu, num dos seus trabalhos, que os chamados “reinos” do Ndongo e da Matamba fazem afinal parte de uma mesma realidade política. Matamba acabaria por acolher o “Estado Ndongo”, por isso o designa por “reino ndongo de Matamba”. Gostaria que nos aclarasse sobre a sua proposta que, segundo nos parece, não é do mesmo entendimento dos demais historiadores…
É este, com efeito, um problema complexo. E isso porquê?… Porque nas nossas actuações e posicionamentos temos sido marcados por dados e informações recebidos há quatro ou cinco séculos, materiais e informações que foram, muitas vezes, incorrectamente recebidos e descritos por quem os captou, grafou e utilizou pela primeira vez… Refiro-me, sobretudo, a documentos portugueses e italianos. Dizer que o meu posicionamento não é do entendimento dos demais historiadores, não é mau, não é negativo, antes pelo contrário, acredito que é de múltiplos posicionamentos, alguns dos quais díspares, contraditórios, que vem a luz… Eu vejo que tais historiadores, a que se refere, receberam a informação acerca de um pretenso “Reino da Matamba”, como algo definitivo e eu acho que não têm reflectido seriamente sobre o assunto… Não pode ser, em História tanto quanto em qualquer outra disciplina do conhecimento científico, nada é definitivo, felizmente!... Aqui, para esta questão, nós partimos de dois pressupostos fundamentais: primeiro, os Kilwanji são originários da Samba, algures na Matamba: daí o nome/título Ngola a Kilwanji kya Samba. Os Kilwanji kya Samba constituíram uma das dinastias mais importantes do Reino do Ndongo e, curiosamente, é aquela que ainda hoje é a mais conhecida, é aquela que é a mais lembrada pelas populações e comunidades de fala e cultura Kimbundu. A soberana Njinga a Mbande, não obstante o seu nome, é, como se sabe, originária da dinastia dos Kilwanji kya Samba, mas graças às lutas heróicas que travou contra os portugueses, ficou também extraordinariamente conhecida, tanto ou mais que os integrantes das outras dinastias.
E segundo...
Segundo, o termo Ndongo é polissémico, como o são, aliás, a maioria das palavras bantu. Assim, esse designativo, além de designar o “país”, designa também o “sacerdote principal”, o “nome da cidade real” (Mbanza a Ndongo); mas significa também uma “ideologia” (ndôngò), tal como eu mostrei no meu livro sobre a história dessa estrutura política. É essa ideologia que a soberana mwene a ngola Njinga a Mbande leva consigo quando se assenhora do território e se instala na terra dos seus antepassados, a Matamba, na fase da luta que dirigiu durante décadas contra os portugueses. Segundo entendo, a Matamba foi desde sempre parte integrante do Reino do Ndongo, uma conexão, um começo, uma continuidade… Daí a expressão: reino ndôngò de Matamba. Como ela se liga aos Imbangala, também conhecidos por “Jagas” (por difusão portuguesa), ela absorve, igualmente, a ideologia do “kilombo”. É com base nestes dois pressupostos ideológicos, que esta consegue travar, enquanto pode, o avanço dos portugueses. Trata-se, pois, de aclarar o que de errado tem sido até aqui proposto…
A dinastia dos Kilwanji kya Samba que, segundo escreveu, reinaram dois ou três séculos (possivelmente desde o século XIII) antes da chegada ao país dos conquistadores portugueses, foi muito marcante para a organização e a estruturação política do “reino” do Ndongo. Há discursos na tradição oral/escrita segundo os quais a corruptela “Angola”, resultante da terminologia Ngola, durante a dinastia dos Ngola a Kilwanji, não surgiu por mero acidente. Notou essa alegada pretensão de unidade nessa dinastia? Em primeiro lugar relaciono a cronologia dos Kilwanji kya Samba com o que escreveu o historiador norteamericano Joseph Calder Miller que, ainda durante a época colonial, fez uma importante pesquisa na província de Malanje. Aproveito esta ocasião para lembrar a memória deste insigne professor, pesquisador e amigo, falecido recentemente. Foi, de facto, uma grande perda para Angola e para o mundo. A dinastia dos Ngola a Kilwanji é certamente posterior à dinastia dos Kilwanji kya Samba. Foram os Ngola a Kilwanji que mantiveram os primeiros contactos com os navegadores portugueses que aqui chegaram. O que é que estes encontraram? Uma estrutura política de dimensões vastas, bem organizada e estruturada do ponto de vista político, económico, social e cultural. As primeiras fontes jesuítas são claras a este propósito. E, no entanto, apesar da história dos soberanos dessa dinastia estar bem instalada nas fontes escritas portuguesas, não são estes que ficaram mais conhecidos nas gerações seguintes, nem muito menos nos ecos das tradições orais, orais/escritas e escritas.
Porquê?
Esse facto me incomoda e me tem mantido constantemente inquieto, pois eu próprio gostaria de tentar perceber como é que uma dinastia que é anterior em muitos séculos permanece hoje mais conhecida em termos históricos do que aquela que permaneceu no poder posteriormente. Serão esses três séculos em que a dinastia dos Kilwanji kya Samba se manteve no poder que marcam em definitivo essa imagem, essa lembrança, a permanência dessa memória ou, enfim, é porque isso se deve à saga da conquista e demarcação do país Ndongo por Ngola a Kilwanji kya Samba?... Esse nome é bastante esclarecedor: “Soberano conquistador do país dos Samba”… Tenho para mim que é exactamente isso que acaba por marcar completamente as nossas memórias!... Os Ngola a Kilwanji bem que tentaram manter o reino incólume, intacto, mas as fontes mostram claramente que as armas dos conquistadores lusos (bem munidos de mosquete, espada, lança e canhão) eram tecnicamente superiores em relação aos meios de defesa dos Tumundongo.
E em relação ao termo Ngola, de que resulta o nome do nosso país Angola?
Já em relação ao termo Ngola, nós temos que pensar de outro modo e não da forma como temos ouvido aqui ou ali. Para os Kimbundu, a palavra “ngola” é também um termo de múltipla significação: começa por designar uma matéria em ferro e, simbolicamente, um signo do poder, e, por isso mesmo, um título político. Ajuntado ao nome/título, temos, por exemplo, “Ngola a Kilwanji”, um título político perpétuo… Em seguida, podemos pensar, por exemplo, na soberana Njinga a Mbande: ela é, em primeiro lugar, e tal como já referi antes, uma Kilwanji, mas pertence aos “Mbande”, uma outra dinastia, a dos “destemidos”: a designação para ela é Mwene a Ngola Njinga a Mbande. Por falar nos “Mbande”, deixa-me aproveitar esta ocasião soberana para corrigir todos aqueles que em vez de Mbande escrevem Mbandi; segundo me alertou uma vez o kota Job Baltazar Diogo, Mbandi é uma corruptela kimbundu de “bandido”, “bandida” e a nossa Njinga não foi nenhuma bandida, esclareceu. Foi graças a esse ensinamento que um dia, quando fui delegado provincial da Cultura de Luanda, solicitei ao meu colega delegado provincial da Educação de Luanda, que corrigisse a escrita do seu nome na instituição que a homenageia, situada algures no Makulusu, próximo ao antigo 1º de Maio. E a correcção foi imediatamente feita. Fechemos este breve parêntesis e continuemos. Em vez de pensar unicamente em quem são e de onde vêm, o que é mais complicado é tentar perceber o que vem antes de ter surgido o próprio “Reino” ou Estado Ndongo... Na História mais antiga dos Kimbundu, há um capítulo que é contado através de narrativas orais, narrativas antigas, mitológicas, portanto, anteriores à História. Aí, deparamo-nos com a história sobre as origens do mundo, uma narrativa sobre o mundo primordial, um mundo criado por Nzambi a Mphungu (Deus todo poderoso)...
O que diz a narrativa?
Observa-se, nessa narrativa, que Deus vivia ainda com os homens em sã harmonia e onde não havia nem se falava ainda da morte. Aí, nesse mundo primordial, harmonioso, encontramos um personagem que se chama muito justamente Ngola. Assim, podemos observar que Ngola é, antes de mais nada, um nome (tal como encontramos ainda hoje muitas pessoas que se chamam Ngola, bastando para tal consultar o Jornal de Angola, na secção de Necrologia, ou, algumas vezes, em reportagens sobre os nomes autóctones). Na narrativa mitológica de que vimos falando, esse personagem Ngola desempenha aí um papel muito importante, e que, sem sombra de dúvidas, ajuda a compreender alguns factos históricos posteriores, tais como, por exemplo, sobre as origens do “reino” do Ndongo, que nos são relatados por dois padres italianos, Cavazzi de Montecúccolo ou Francesco Maria Gioia, no século XVII: foi um ferreiro que fundou o Reino do Ndongo e esse ferreiro, tal como na história das origens do mundo, se chamava justamente Ngola. Qual era então a função de Ngola nessa narrativa mitológica?