Há que apoiar o Instituto de Línguas Nacionais
É verdade… Tal como disse, para a minha dissertação de mestrado, trabalhei sobre o lugar e papel do Kilamba - um importante título político-religioso na sociedade de tradição, para empregar um termo consolidado na Antropologia e na Sociologia por Georges Balandier, estudioso francês de boa memória. Essa dissertação, de 175 páginas dactilografadas, ainda não está publicada. Foi escrita em francês e eu ainda não tive possibilidade de a traduzir. No ano seguinte, após a defesa da dissertação, creio que em 1989, participei na cidade do Porto (Portugal) numa importante conferência sobre Agostinho Neto e aí apresentei um trabalho que discutia muito justamente o significado de Kilamba em Agostinho Neto e o seu significado simbólico, marcado pela atribuição do designativo composto atribuído a um novo município (Município do Kilamba Kyaxi). As actas dessa reunião começaram por ser publicadas pela Fundação António de Almeida no Porto. No entanto, como dessa obra chegaram apenas a Angola uns poucos exemplares, que logo se esgotaram, o escritor António Cardoso, que nessa altura dirigia o então Departamento Nacional de Arte, Literatura e Espectáculos (DNALE) da Secretaria de Estado da Cultura, encarregou-se de o publicar em Angola. Curiosamente, essa obra viu a luz do dia sob a chancela do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA).
Voltando à questão...
Agostinho Neto usou desde sempre o antropónimo Kilamba durante a luta política que dirigiu contra o colonialismo opressor; conhecedor profundo da sua cultura de origem, eu suponho (digo suponho porque nunca o entrevistei a esse respeito) que ele tinha para si que o uso político desse título, cuja terminologia se enquadrava na organização do sistema político na comunidade étnica akwakimbundu, representava a autoridade política mais poderosa do sistema, mais poderosa que a do próprio mbanza e do soba (dois títulos do sistema político na sociedade de tradição), uma vez que estes últimos não poderiam exercer funções sem que fossem preparados magicamente por um kilamba. Enfim, é conveniente esclarecer que no seio do MPLA, todos os militantes e combatentes durante a Luta Armada de Libertação Nacional, eram chamados a utilizar um nome de guerra, o que, obviamente, explica tudo.
Nas suas obras grafa os tons da língua Kimbundu, procurando estar de acordo com a norma estatuída pelo Instituto de Línguas Nacionais (ILN). Como vê hoje esse “autêntico caos”, como lhe chamou, na utilização e transcrição das nossas línguas?
É verdade, a ideia era mostrar a importância do trabalho que o Instituto de Línguas Nacionais (ILN) estava a fazer e que foi desde sempre alienado e desarticulado por muitos…, aliás, sempre bem escondidos!... O ILN é a instituição que se seguiu ao Instituto Nacional de Línguas (INL), uma instituição que continua ainda hoje a desempenhar debilmente as suas funções, por falta de apoios evidentes!... Só para perceber: o INL nasceu graças a Agostinho Neto e essa poderia ser uma das suas maiores marcas de governação durante o seu tão diminuto mandato (Novembro de 1975 – Setembro de 1979). A sua morte constitui uma crueldade da natureza difícil de apagar, difícil de compreender!... Podemos entender a morte, porque todos nós vamos morrer, ninguém ficará por cá eternamente, a não ser de outro modo, quando se é relembrada a memória de alguém que em vida nos deixou traços marcantes. Difícil de entender foi a maneira tão trágica e, por vezes, tão abusiva, como muitas das suas orientações, muito do seu legado foi paulatinamente esquecido, apagado. E as ideias sobre as Línguas Nacionais constituem sem dúvida uma das suas marcas, que foram sendo apagadas por posicionamentos de algumas figuras implantadas na função pública e até mesmo no partido-MPLA e alienadas negativa e drasticamente pela Constituição de 2010. Historicamente teremos que recuperar a nossa memória e voltar a ler com os olhos de ver o que foi publicamente proposto pelo documento orientador da 3ª Reunião Plenária do Comité Central do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), que teve lugar no auditório do Museu Nacional de História Natural, em Luanda, de 23 a 29 de Outubro de 1976.
Quais são as orientações desse documento?
Fala-se aí, nesse documento lapidar, da necessidade de lutar pela liquidação do analfabetismo e resgatar e popularizar as manifestações positivas da nossa cultura e dos vários grupos étnicos que compõem o nosso povo; preservar e desenvolver estudos das línguas nacionais com a inclusão do português como idioma veicular. E para dar corpo ao projecto de liquidar o analfabetismo, foi criada uma Comissão de Educação, Cultura e Desportos no Comité Central do MPLA e foi determinada a dinamização do Departamento de Educação e Cultura (DEC), com o objectivo de orientar permanentemente o Ministério da Educação e o Conselho Nacional de Cultura. Com a criação do INL e a necessidade de conhecer a organização das Línguas Nacionais de Angola, estavam criadas as condições para o seu estudo sistemático e a sua consequente materialização nas tarefas da alfabetização e em geral no ensino. O que é que se vê hoje?...
Sim, perguntaria o mesmo...
Não só essa orientação específica, concreta, acabaria por ser esquecida, como hoje a alfabetização é feita unicamente na língua portuguesa, constituindo isso um autêntico contrassenso, porque dificulta a rápida compreensão e o avanço das pessoas alfabetizadas, que falam geralmente as suas línguas maternas, que são estruturalmente diferentes da língua portuguesa, ocorrências que não preconizam avanços coerentes pelos confrontos evidentes entre umas e outras línguas, contrariando assim as principais orientações acerca do que Agostinho Neto preconizara… A saída que preconizamos hoje só pode ser uma: voltar ao projectado anteriormente, porque foi correctamente pensado e orientado de acordo com as nossas idiossincrasias. Prover financeiramente o ILN, criando condições para que todas as Línguas Nacionais sejam estudadas; falamos não apenas das línguas que são de origem Bantu e que ainda não foram abordadas (Herero, Lunda ou Uruwundu, Ciluba, Luvale, as línguas do grupo Okavango), mas também, por exemplo, a língua da comunidade San (ditos Khoi-san) e a língua dos Kwisi/Ovakwandu e dos Kwepe (Kwai/tsi), comunidades que terão sido geralmente enquadradas na terminologia colonial por Vatwa. Proceder à publicação contínua dos trabalhos de investigação das línguas já estudadas, assim como os trabalhos de suporte sobre os Textos Orais (matérias resultantes de amplas recolhas das Tradições Orais, de todas as comunidades étnicas do país) de que os cidadãos recém-alfabetizados têm necessidade para manterem em dia a formação recebida.