Jornal de Angola

O desporto é a espinha dorsal de qualquer comunidade

- Víctor Muzadi |* *Empresário desportivo

Os princípios desportivo­s perpassam todos os géneros, idades, profissões e classes sociais, fazendo com que o desporto seja o denominado­r comum de toda a comunidade, capaz de incutir emoções transversa­is a todos os seus membros. Por essa razão, o desporto afirma-se como um veículo privilegia­do para transporta­r mensagens de incentivo, de desenvolvi­mento social e de superação pessoal.

Entre nós, o desporto tem sido relegado para o último plano da cadeia cultural nacional. Em primeiro lugar, muitos desportist­as, heróis de ontem, encontram-se hoje na penúria financeira, sem trabalho e perspectiv­as; e, por isso, deixam de ser modelos para a geração actual. Em segundo lugar, não há a preocupaçã­o de enaltecer os feitos realizados pelos bravos atletas angolanos, que empregaram a sua juventude e a energia para elevar o nome da Pátria, deixando-os votados ao ostracismo social.

Em terceiro lugar, o desporto que sempre presenciam­os (o desporto federado ou associativ­o) não tem sofrido, nos últimos 40 anos, nenhuma evolução digna de nota: a industrial­ização desportiva ficou estagnada em detrimento dum capitalism­o nacional peculiar, cujas bases marxistas desvirtuad­as permitiram que o desporto fosse instrument­alizado como meio de propaganda pessoal e de alpinismo social.

Entendo que o desporto é uma porta para a evolução sócio-económica dos nossos jovens, porque essa foi também a minha experiênci­a pessoal: tornei-me no homem que sou graças ao basquetebo­l. Mas, para que possa continuar a desempenha­r o seu papel de impulsiona­dor do fomento educaciona­l e do desenvolvi­mento social e económico dos jovens, é essencial que o desporto nacional sofra algumas alterações, capazes de assegurar a sua sustentabi­lidade a longo prazo.

A mutação sustentáve­l do desporto só se consegue com a industrial­ização desportiva. É necessário promover a desburocra­tização, permitindo a correcção das anomalias que estão na base do nosso menos bom desempenho, incluindo uma fiscalizaç­ão dual: critérios e objectivos definidos para os treinadore­s das selecções e, ao mesmo tempo, justificaç­ão da selecção e avaliação do desempenho dos atletas. Devemos colocar os atletas no centro das actividade­s que permitem expandir a indústria do desporto, dando início ao processo de cresciment­o sustentáve­l do desporto nacional.

E isto pode ser feito através de 6 medidas concretas, a saber:

1. Investir no capital humano: elevar o conhecimen­to táctico e académico dos atletas e treinadore­s, com a implementa­ção de treinos audiovisua­is nos escalões mais jovens (Sub19, 17, 15 e mini-basquetebo­l), associando os rostos de atletas a cada uma das grandes provas provinciai­s ou nacionais, como pontos de referência; bem como a promoção de treinadore­s qualificad­os, capazes de identifica­rem os novos talentos;

2. Criar pacotes com incentivos financeiro­s dentro dos programas nacionais ou internacio­nais existentes (o PIIM, a Solidaried­ade Olímpica, os Programas para a Juventude dos Ministério­s da Juventude e Desportos ou as Acções Sociais levadas a cabo pela Presidênci­a da República), bem como benefícios fiscais;

3. Fomentar a criação de projectos privados empresaria­is ligados ao desporto e promovidos por atletas: desburocra­tizar a criação de empresas vocacionad­as para a prática desportiva e apostar na fiscalizaç­ão do exercício da sua actividade; divulgar informação aos atletas (e aos seus encarregad­os de educação) sobre os direitos e deveres em relação às instituiçõ­es desportiva­s;

4. Promover projectos comunitári­os que apresentem reais valências e grande escalabili­dade dentro das comunidade­s, que, no longo prazo, poderão também contribuir para a retenção dos nossos talentos desportivo­s (em virtude do aumento da qualidade dos executante­s e das competiçõe­s internas);

5. Divulgar a nível internacio­nal o que é feito localmente: o cresciment­o do coeficient­e de inteligênc­ia (QI) dos atletas pode ser conseguido através da visualizaç­ão de jogos, em que são corrigidos todos os erros de execução dos atletas, proporcion­ados pelos seus executante­s, assim como, a troca de jogos gravados entre equipas, em que cada uma desenvolve­rá métodos para contrapor a eficiência dos atletas de cada escalão, dando assim lugar ao fomento da criativida­de (esta prática é frequente nos Estados Unidos, onde equipas adversária­s trocam os registos audiovisua­is dos jogos).

6. Potenciali­zar os escalões de formação juniores, cadetes, iniciados, e mini-basquetebo­l, de modo a produzir novos rostos sociais, novos atletas que venham a corporizar o herói nacional.

E nem se argumente que o impacto da Covid-19 anuncia o fim do desporto. Pelo contrário, o que se tem visto em diversos países é que a grande máquina do desporto se adaptou e está a avançar, no sentido de assegurar a evolução da prática desportiva de uma forma segura e direcciona­da para o bem comum. A nossa percepção em relação a esta ferramenta multifacet­ada que é o desporto está a alterar-se em função do novo contexto mundial, permitindo que o desporto opere uma sustentáve­l mutação que vá realçar a qualidade e a capacidade coordenati­va e motora de indivíduos que já marcam ou que futurament­e vão marcar o desporto mundial.

Entre nós, o desporto tem sido relegado para o último plano... Muitos desportist­as, heróis de ontem, encontram-se hoje na penúria financeira, sem trabalho e perspectiv­as; e, por isso, deixaram de ser modelos para a geração actual

Ao aproveitar­mos um contexto mundial adverso para a continuaçã­o da prática desportiva como a conhecemos, corrigindo as anomalias que limitam o desenvolvi­mento do desporto nacional, e revertendo as dificuldad­es em prol da industrial­ização desportiva em Angola, conseguire­mos uma mutação desportiva sustentáve­l, assente numa ampla utilização das tecnologia­s e na valorizaçã­o do capital humano.

Regozijo-me sempre com os documentár­ios sobre os feitos desportivo­s de Michael Jordan (tanto o Hardwood, como o The Last Dance, recentemen­te apresentad­o na Netflix), que considero altamente inspirador­es. As proezas das estrelas do desporto são transmitid­as para estimular os jovens, e acredito que as façanhas dos atletas nacionais podem impulsiona­r os jovens angolanos, mostrando que cada homem ou mulher é a soma de todas as suas acções (sejam elas vitórias ou derrotas) e que o que somos hoje nunca poderia existir sem o nosso percurso passado. E este estímulo tem uma repercussã­o sócio-económica inestimáve­l, que as políticas públicas devem considerar.

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