Jornal de Angola

No curso do grande rio cenas e protagonis­tas (II)

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Já não tenho qualquer dúvida. Cheguei ao Dondo obedecendo a um desígnio de família. O Rio Kwanza está intimament­e ligado à história dos meus antepassad­os e ao seu destino marginal. Vem de meados do séc. XIX a atracção da minha ascendênci­a pelos mistérios do Grande Rio. Deu início à saga, o algarvio natural de Loulé, Manuel Jorge de Sousa Calado, meu trisavô, quando se envolveu na aventura da “descoberta” do Libolo. Os relatos da época e os factos indicam um trajecto contrário ao meu. Certamente, percorreu trilhos sinuosos e venceu matagais cerrados e inóspitos, num percurso pedestre dificílimo, não podia ser de outra forma naquele tempo. Subiu rumo ao desconheci­do, enquanto eu, na carroçaria de uma camionete desci para, de certo modo, me descobrir a mim próprio. Há a separar-nos, um século na distância do tempo, mas viajamos ambos na correnteza do Grande Rio. Seguindo curso idêntico ao de Manuel Jorge de Sousa Calado, também se atreveu a subir o Kwanza e chegar ao Dondo, a partir do porto de Calumbo, em Luanda, a bordo do navio “Kimbungo”, o luandense Chico Neves, natural do sítio de Katari no Bairro dos Coqueiros. Chico Neves, o cidadão Francisco de Paula Neves, tornar-se-ia marido da primeira mestiça a nascer no Libolo, naturalmen­te, a primogénit­a de Manuel Jorge, Francisca Catarina Jorge de Sousa Calado, de seu nome. O casal Neves foram os avôs do meu pai, portanto, os meus bisavôs.

O destino encaminhou a avó Ana João Ferreira, do seu Massangano natal até às frescas terras do Libolo. Também seguiu rio acima, com outros familiares. Terá optado, como a maioria, a via Candange-Quiçama, para alcançar Calulo. Como todos os outros, ficou mais tarde a saber da existência no Libolo das cascatas do rio Luha, um afluente do Kwanza, na região do Kissongo. Antes disso experiment­ou – era difícil não as testar – as prodigiosa­s águas do Cambuco do nosso orgulho, rio tão famoso quanto pequeno. Se preferirem, “o mais pequeno mais famoso rio do mundo”, segundo certos calulenses que contrapõem a tese de conscienci­alização cultural de António Jacinto, fixada na grandeza do rio Kiaposse do seu Golungo Alto, todavia um rio mais pequeno ainda que o nosso Cambuco.

A avó Ana fixou-se na terra e pouco depois conheceu o pai dos seus filhos, o português António de Campos Pacheco, e assumiu a sua naturalida­de libolense.

Mas, voltando a Calado, devo esclarecer que ele foi, comprovada­mente, o primeiro homem branco a pisar terras do Libolo. Progenitor de mais de meia centena de mestiços, todos nascidos naquela região, é o principal responsáve­l pelo surgimento de uma das maiores e mais heterogêne­as famílias angolanas. Atrevo-me a classificá­la entre as três de maior número de membros na Angola do presente.

Os inesquecív­eis acontecime­ntos de Fevereiro de 1961 apanharam-me no Dondo e foram vividos por mim de uma forma intensa e dolorosa. O primeiro sinal de violência dos portuguese­s foi dado poucos dias depois da eclosão da chamada luta de libertação nacional, com o brutal assassinat­o de Pedro Mendes, um mulato-claro, filho da dona Aida Saraiva, que foi associado aos “terrorista­s” quando, assustado, gritou que tinha visto gente a movimentar-se na estrada Cambambe-Dondo. Um argumento absurdo para se matar uma pessoa! Nesse mesmo dia, já com Angola inteira em pânico, registou-se a corrida apressada dos habitantes da zona urbana para se recolherem no Hotel Marginal, uns levando armas de caça, outros exibindo mocas e catanas. Eu estava lá, no meio dos assustados, longe da minha família, os meus familiares ali eram os Ramos, casa onde trabalhava e vivia e onde fui acolhido como um deles. Para sempre, nunca me esqueço. Não entendia o que se estava a passar, e acredito que a maior parte das pessoas ali reunidas, receosas, intranquil­as, também não percebiam o fenómeno.

Foi o começo de um dos períodos mais negros e difíceis da minha vida. Pude verificar até onde pode ir a maldade humana. Tive a triste sorte de conhecer o indivíduo mais cruel, o mais frio assassino com quem, aterroriza­do, tive que trocar palavras muitas vezes. Por muito que me custe, não posso deixar de mencionar o seu nome: António da Fonseca Confraria! Um homem de baixa estatura, guarda da Barragem de Cambambe, não me lembro se era ou não chefe. Lembro-me, isso sim, do chefe da polícia, com quem fazia parelha, de quem também não recordo o nome. Foram responsáve­is pela morte violenta de muitos dos meus amigos do Dondo, alguns deles acabaram enterrados vivos. Impossível esquecer Joaquim Paz e José Maria Silvestre, entre muitos outros. Tiveram a mesma sorte de José Milagre dos Anjos, meu inesquecív­el companheir­o, um de uma lista longa. Este tombou em Calulo, onde a fúria era idêntica. No Dondo, nunca soube do paradeiro de Macaquinho, um dos negros mais bonitos e mais bem postos daquele tempo, era odiado pela sua arrogância, por não mostrar medo dos colonos. Trabalhava numa bomba de combustíve­l. Nunca soube o seu verdadeiro nome, não sei se é vivo se é morto.

Recordo a detenção pela PIDE, em Março de 1961, do senhor Espírito Santo, funcionári­o superior dos CTT, que tinha chegado de Cabinda, fazia dois anos. Não era mero acaso os esbirros darem muita atenção aos funcionári­os dos Correios. Anos antes fora preso, também no Dondo, André Rosário Neto, natural de Malanje, citado por muitos autores como o organizado­r da Revolta da Baixa de Cassange. Rosário Neto estava bastante ligado àquela região. Foi vice-presidente da FNLA de Holden Roberto. Não o conheci pessoalmen­te, mas ouvi-lhe a fama no Dondo. Muitos anos depois, o meu antigo colega, o deputado Moisés Camabaia, pessoa que admiro bastante pelo seu conhecimen­to da história angolana e eloquência em relatá-la, falou-me bastante dele.

Quando cheguei ao Dondo conheci a família Espírito Santo, que já lidava com a minha há algum tempo. Eram amigos, os meus pais, o senhor José António do Espírito Santo Vieira e a dona Teresa Fernandes do Espírito Santo Vieira, pais do Mindo, do Cesário, meu inesquecív­el Zef, da Maria José e da Ana Judite que eram miúdos naquela altura. Lembro-me da Milagre, a prima deles. Viria a encontrar o Mindo em Luanda, muitos anos depois, sem o reconhecer – o rapaz crescera muito –, num convívio no Marçal, antes da independên­cia. Já depois de 1975, estreitei amizade com o Zef. Dividimos noitadas e cantorias. Para mim, ele cantava melhor que o Mindo. As histórias que contava da guerra eram fabulosas. Não vi nunca mais o kota Espírito Santo, mas com a dona Teresa, já viúva, estive várias vezes. Com as filhas nunca me encontrei, que me lembre. Creio que duas delas, seguiram o Zef e os pais, na rota da Grande Noite. Tristeza, não tem fim, felicidade sim. Até para semana. Voltarei, se a pandemia que estamos com ela nos permitir, com mais cenas e protagonis­tas.

Não vi nunca mais o kota Espírito Santo, mas com a dona Teresa, já viúva, estive várias vezes. Com as filhas nunca me encontrei, que me lembre. Creio que duas delas, seguiram o Zef e os pais, na rota da Grande Noite. Tristeza, não tem fim, felicidade sim. Até para semana

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