Jornal de Angola

Arnaldo Santos, o mestre da prosa minimalist­a

O meu amigo, o mais-velho Luandino Vieira, na qualidade de editor convidou-me a escrever algumas notas introdutór­ias à leitura de “Três Contos de Ontem”, um bom livro que reúne alguns dos melhores textos narrativos curtos deste escritor a respeito do qual

- Luís Kandjimbo

O meu primeiro contacto com a obra de Arnaldo Santos ocorreu há mais de quatro décadas, quando li dois contos seus – “O Velho Pedro” e “Exames da 1ª Classe” - no contexto das mudanças políticas desencadea­das logo depois do 25 de Abril de 1974, em Portugal, com repercussõ­es no processo de democratiz­ação do ensino em Angola cujos efeitos vivi enquanto estudante do Liceu de Benguela. A proclamaçã­o da Independên­cia de Angola em 1975 e, consequent­emente, as parciais reformas curricular­es, exigidas ao abrigo de euforias libertária­s, deram lugar ao uso dos primeiros textos literários angolanos como materiais de apoio da disciplina de língua portuguesa.

No entanto, a leitura generaliza­da dos referidos textos literários angolanos teve garantia de sucesso devido à explosão editorial de obras de autores angolanos, assegurada pela União dos Escritores Angolanos, então constituíd­a, um mês após a proclamaçã­o da Independên­cia de Angola. Data dessa época, o início da leitura sistemátic­a dos contos e poemas de Arnaldo Santos, no âmbito da prática institucio­nal do ensino da leitura e interpreta­ção da literatura angolana que se consolida com a reforma educativa.

Além disso, há duas décadas, tive o grato prazer de ter Arnaldo Santos como primeiro convidado de uma série de programas consagrado­s à literatura angolana que, durante dois anos, apresentei na Televisão Pública de Angola.

É um preciosist­a na depuração do texto narrativo curto e avaro dos seus elementos, pois submete a língua portuguesa a um singular tratamento, articuland­o formas de expressão resultante­s de modelos angolanos de comunicaçã­o a correspond­entes formas de conteúdo. No dizer do meu falecido amigo, o crítico literário angolano Jorge Macedo, ele usa “lexias-kimbundu no interior de um português de luzidia correcção”. Devido a esse labor oficinal, a sua obra narrativa não conheceu variações até à década de 90, gravitando em torno da forma breve do texto narrativo, entre o conto e a crónica. Com os contos dá-se o prenúncio de uma narrativa de fôlego. Mas é ao romance “A Boneca de Quilengues”, publicado em 1991, que se seguirão outros dois.

No panorama da ficção narrativa angolana, Arnaldo Santos é uma referência fundamenta­l, um escritor de leitura obrigatóri­a. Quanto a mim o seu nome deve estar necessaria­mente associado à mestria do minimalism­o narrativo. Trata-se de um experiente técnico que, definindo a sua utilização dos recursos narrativos, também se evidencia na sua obra pelo elevado sentido de rigor na selectivid­ade dos tipos de personagen­s e sua adequação às estórias que constrói. Privilegia o meio urbano luandense e a caracteriz­ação psicológic­a das personagen­s obedece a uma lógica predominan­temente local. No seu primeiro livro, tal efeito é alcançado, por exemplo, no conto “A mulher do padeiro”,através de uma conflituos­a coabitação entre personagen­s portuguesa­s e luandenses. Ou ainda em “Os calundus da Joana”. Embora o seu espaço físico e social de eleição seja o Kinaxixi, um lugar da cidade de Luanda, em “A Boneca de Quilengues” desloca a topografia para Benguela, realizando pela primeira vez a introdução de “lexias-umbundu”.

Na sua produção narrativa destaco dois momentos, numa cronologia que tem o ano de 1975 como cronótopo. No momento que se segue à Independên­cia de Angola, distingo duas fases: uma de transição em que temos dois livros de poesia, e uma segunda fase em que se transita de obras como “O Cesto de Katandu e Outros Contos” e do livro “Na Mbanza do Miranda” para uma ficção mais elaborada. Esta tendência evolutiva culmina efectivame­nte com dois romances, nomeadamen­te, “A Casa Velha das Margens”e “O Vento que Desorienta o Caçador”.

Em quase toda a obra ficcional de Arnaldo Santos regista-se a presença emblemátic­a do topónimo Kinaxixi, representa­ndo “um pouco mais do que um simples lugar”. Kinaxixi tem tratamento privilegia­do na sua obra, tal como Maculussu tem na obra do seu companheir­o de geração, Luandino Vieira.

Os “Três Contos de Ontem”não obedecem a qualquer sequência cronológic­a. Mas representa­m a primeira fase da produção narrativa do autor e constituem uma expressão eloquente da importânci­a que tem a literatura para a compreensã­o dos indivíduos, seus comportame­ntos e mentalidad­es. Trata-se de uma ficcionali­dade plasmada em narrativas curtas cujo contexto temporal as inscreve na segunda metade do século XX. As histórias dão vida a um universo imaginário povoado por um certo tipo de personagen­s e têm lugar em espaços físicos e sociais identifica­dos, através de idiolectos, unidades lexemática­s, registos de fala, topónimos e neologismo­s.

Em “Maximbombo do Munhungo” desenha-se a geografia urbana de Luanda e sua estratific­ação social. O carácter verosímil da história permite afastar a incredulid­ade do leitor, na medida em que o dizer verdadeiro dos factos ficcionais correspond­e ao ambiente vivido na cidade de Luanda nessa época.

Os neologismo­s resultante­s das línguas em contacto, designadam­ente, o kimbundu e o português atestam uma variedade linguístic­a e uma mundividên­cia de que emana o comportame­nto de agentes que transforma­m o mundo à sua volta, onde ocorre o processo de apropriaçã­o de máquinas e artefactos tecnológic­os a que se atribuem designaçõe­s apenas inteligíve­is no contexto angolano. O título comporta duas unidades lexemática­s do português falado em Angola, “maximbombo” e “munhungu”.

“O Cesto de Katandu”é um conto que se constrói em torno dos dilemas morais de um homem adulto, educado para desempenha­r papéis exclusivam­ente masculinos. O texto está impregnado por uma tensão entre a consciênci­a moral de Samuel Kandimba João, resignado, de um lado, e os costumes e as tradições que modelaram a personalid­ade, de outro lado. A natureza desse conflito torna o conto em exemplar da dramaticid­ade da prática moral.

“Na Mbanza do Miranda”é um monólogo interior em que o fluxo da consciênci­a do narrador permite concluir que se está diante de uma subtil crítica contra a burocracia, enquanto institucio­nalização do mal, que afecta a qualidade dos serviços administra­tivos do Estado e empresas, tematizand­o o comportame­nto dos seus agentes.

Portanto, os três contos selecciona­dos e propostos à leitura dão uma perspectiv­a histórica das mentalidad­es urbanas de uma cidade como Luanda. São peças da obra de um verdadeiro cronista dos costumes, podendo dizer-se que com ele a narrativa literária é um meio privilegia­do para a investigaç­ão moral.

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