Regresso dos parentes do Drácula à cidade da Kianda
Com voz abafada, traje cor da paz a esvoaçar pela cortina de poeira nas ruas, o fantasma da cidade capital parece ter voltado. A assombração parece procurar o cidadão para o abraçar, beijar, agarrar e adormecê-lo no berço de areia da sua eterna morada
Os jovens calcinhas, com vaidade de pavão, caídos do céu, com árvore de dinheiro em casa, subtraem a presença no olhar da lua e das estrelas. Mesmo o roncar de carros de luxo desapareceu na noite. Estes jovens, maioritariamente na flor da idade ou na idade de Cristo, são filhos da dona e senhora desta cidade, mulher com rabo de peixe e que habita nas profundezas das águas da baía de Luanda, a Kianda. No tempo da outra senhora, quando aportassem nas discotecas de Maputo, Cidade da Praia e nas capitais de outros países do continenteberço, pagavam até as contas dos ratos, baratas e mosquitos, para impressionar mulheres mascaradas nas etiquetas vãs e por traz do batom, brilhantina, base, correctivo e cabelo plástico.
Estes jovens vaidosos como pavão simplesmente evaporaram-se, não deixaram palavras ao vento. Muitos até estão encravados em Lisboa, Paris, Joannesburgo, Dubai. A maior parte ostenta o que não ganhou. Não conhecem o fruto do suor do rosto.
Distante deles, hoje, a cidade de Luanda, finalmente, pode fechar os olhos e adormecer comodamente às noites, principalmente no dia em que Deus descansou ao construir o mundo. Há décadas que não dormia sossegada, não pregava os olhos na cabeceira.
As ruas da cidade da Kianda, acesas e ao mesmo tempo escuras, confundem rios de asfalto, e ao mesmo tempo imitam o deserto do Namibe, pelo menos à noite e à madrugada. Vemos algumas criaturas perdidas, como oásis, a evaporar sob o olhar incendiário dos policiais e militares postados numa e noutra esquina, lembrando os velhos tempos de rusga. Mesmo os bairros esquecidos pela alma dos administradores, com casas amontoadas, umas empurrando outras, bairros onde a noite cai violenta, o deserto se estende, o seu lençol de areia apenas consente a ausência da marca das calças. Um cão solitário pode representar uma multidão que outrora não sabia pregar os olhos no travesseiro durante a noite, sem o vulcão de uma valente briga de comadres, ciúmes, fofocas.
Os homens que bebem álcool em quantidades industriais, noctívagos, boémios, meretrizes, drogados, poetas, rosqueiros, deixaram de bater nas costas da cidade para mantê-la sempre acordada, no mínimo, aos finsde-semana. Realmente, o fantasma da cidade de Luanda chegou, e apenas o que se pode fazer é deitar a toalha ao tapete, abandonar o ringue das ruas e prestar mais atenção aos rebentos da árvore familiar. E para quem já cortou ou caiu da árvore que tente reconstituir a copa, o tronco e as raízes, ou plantar outra árvore em vez de uma floresta. Nada é impossível. Na verdade, o somatório desta calada dolente aos fins-desemana e não só, é provavelmente o regresso de dois famosos fantasmas desta região, o Kazumbi e o Mayombola, encarnados num vírus conhecido nos palcos internacionais por Covid19. Porque o ambiente em que estes fantasmas sobrevivem está reconstituído.
Como consequência, as pessoas entrincheraram-se em casa, indagam-se sobre o que vem adiante. Temem perder a alma e adormecer eternamente antes do fim da picada, enfim. Nesta estação contemporânea, apanhamos o comboio do tempo. Ao invés de avançarmos… regressamos no tempo. Desta vez, ninguém precisa de um adivinho para precipitar a chuva ou para subir no muro do horizonte, com binóculos, e ver o amanhã chegar, ou mesmo contar quantos dias faltam para ele próprio morrer. Desta vez, e porque veio encarnado em Covid-19, até os pastores e ovelhas estão embaixo da cama, a contar os dias com os dedos da mão. Apenas a ciência, com seus rios de conhecimento, procura a chave perdida no mar.
Vaidosos, aborrecidos, alegres, funestos, os fantasmas sempre andaram pelo passeio, avenidas, jardins, restaurantes, residências, florestas, vilas e cidades. Na sua maioria são solitários e caminham por trás das pessoas, contando as marcas dos pés na areia, principalmente nas noites sem luar.
Estes turistas vindos do outro mundo têm elevada simpatia pelos descendentes de Adão e Eva. Mesmo na terra de William Shakespeare, país que há milhares de anos era habitado por negros de olhos azuis, o primo direito do Kazumbi, o Drácula, não deixou de andar pelas ruas de Londres. O senhor desenvolvimento o agarrou. Levou-o para o cinema, teatro e mesmo para a literatura. De quando em vez sai das telas de TV, dos palcos de teatro e dos livros e volta às ruas. Neste momento, tal como o seu primo também está a andar por algumas cidades do velho continente. Eu sou a única pessoa no mundo que percebeu essa realidade.
Na cidade da Kianda, quando eu corria debaixo da chuva, fazia carros de lata, apanhava gafanhotos no meio da década setenta e início da oitenta, nos bairros hoje na linha da pobreza, temia dois grandes fantasmas, o exército de meus amigos também ficava em sentido, trêmulo. Trata-se do Kazumbi e do Mayombola. Nunca ninguém os viu, mas sentíamos mais a sua presença do que gente boa que passava por nós, saudando, dando conselhos.
As estórias de kazumbi seguiam quase sempre a mesma plástica, era um jovem que conhecera uma moça de beleza esplêndida. Acompanhava-a até a casa, e quando no dia seguinte voltava para a visitar, a mãe lhe dizia que a filha já havia morrido faz tempo. Para secar a maré de dúvidas, visitavam o campo santo. O moço reconhecia a foto dela no epitáfio e o seu casaco, emprestado na última noite, pendurado na cruz da campa. Naquele tempo, conhecer uma diva solitária durante a noite levantava a poeira da suspeita. A fórmula mais aconselhada era observar se ela tinha os pés no chão. Havia outra estória na qual a moça, de beleza deslumbrante, pedia ao apaixonado para a acompanhar. Exactamente na porta do cemitério, o encantado percebia onde estava. A moça entrevava-se…
Mas foi o Mayombola que mais sacudiu o corpo e a alma dos adolescentes e crianças da minha geração. Muitos passaram noites em branco. Todos piamente acreditavam que, a qualquer momento, podiam ser levados pelo fantasma. Tinha a destreza de separar o corpo da alma das pessoas, principalmente dos miúdos. Levava-os, mortos já, para os campos de cultivo de milho, mandioca, batata, macunde e outros produtos agrícolas, para trabalharem. Lá encontravam outras pessoas conhecidas que já perderam a vida. Quando viesse um novo amigo do interior, miúdo, é claro, reforçava a presença do Mayombla, abria o verdadeiro livro, falava do perfil do fantasma e das suas preferências.
Estes dois amigos, vindos do além, não são os únicos que descem as escadas do inferno para nos visitarem. Não vamos recordar os demais nestas linhas, há outros a viverem felizes na literatura angolana. A verdade é que, na cidade da Kianda, quando o sol é engolido pelo mar, vive-se o típico ambiente dos parentes do Drácula. Aliás, quando a epidemia começou com os seus primeiros passos no velho continente, perguntei a um cidadão do mundo, que ainda vive na idade média, o que estava a acontecer na Europa. Ele foi claro a dizer que “é feitiço do branco”.