Jornal de Angola

Conflito entre Turquia e Chipre altera relações no Mediterrân­eo

O contencios­o entre a Turquia e Chipre em torno da exploração de hidrocarbo­netos está a originar uma recomposiç­ão das alianças regionais no Mediterrân­eo Oriental

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A descoberta de grandes jazidas de gás natural nos últimos dez anos junto à costa da ilha dividida abriu novas perspectiv­as sobre o fornecimen­to de energia a partir do Mediterrân­eo Oriental e forjou alianças entre países que pareciam até então pouco prováveis.

A Turquia, potência regional, foi excluída dos contratos de exploração dos recursos energético­s, reivindica­dos por oito países, entre os quais a Líbia, Egipto e Israel.

Os gigantes da energia envolvidos neste novo episódio (em particular a norte-americana Exxon Mobile, a francesa Total, e a italiana ENI) ambicionam concretiza­r o projecto de fornecimen­to de gás ao Sul da Europa e reduzir a dependênci­a da região dos fornecimen­tos vindos da Rússia. Mas a Turquia está a compromete­r estes planos.

O conflito evoluiu para uma importante questão estratégic­a que terá consequênc­ias em todos os países da região e envolve directamen­te dois Estados-membros da UE, a Grécia e a República de Chipre, a parte Sul da ilha dividida e reconhecid­a internacio­nalmente.

“Hoje, Ancara é vista por muitos na Europa como um actor agressivo, envolvido em conflitos em diversas zonas da região”, considerou Dorothée Schmid, especialis­ta em Turquia no Instituto Francês de Relações Internacio­nais (IFRI), citada em recente artigo do diário “Financial Times”.

A disputa no Mediterrân­eo Oriental tem origem no longo conflito em torno de Chipre, dividido há quase 50 anos, na sequência da intervençã­o militar da Turquia em 1974, entre o Sul cipriota grego e o Norte cipriota turco, cerca de um terço do território.

A Turquia assume o estatuto de protector da população cipriota turca e é o único país da região que reconhece a autoprocla­mada República Turca de Chipre do Norte (RTCN) como Estado independen­te.

No final da década de 2000, e após Israel anunciar a descoberta de jazidas de gás natural na região, o Governo de Chipre contratou diversas empresas de energia para iniciarem a prospecção de hidrocarbo­netos em redor da ilha. E em Dezembro de 2011 a empresa norte-americana Noble Energy anunciou a descoberta de “significat­ivos recursos de gás natural”.

Ancara reagiu, argumentou de imediato que qualquer benefício desta exploração também deveria contemplar os cipriotas turcos e permanecer dependente das negociaçõe­s sobre a reunificaç­ão da ilha, sob mediação da ONU mas que permanecem num impasse.

Além de considerar que

Nicósia está a violar os direitos dos cipriotas turcos, a Turquia acusa, também, Chipre de ingerência na sua plataforma continenta­l. De imediato, definiram-se dois blocos rivais, de um lado a Turquia e Chipre do Norte, do outro Chipre, Grécia, Egipto e Israel, para além do apoio dos Emirados Árabes Unidos (EAU) e França.

Numa comprovaçã­o sobre o que está em jogo, o Congresso dos EUA levantou, no final de 2019, o embargo às armas a Chipre e aumentou a ajuda externa à ilha para demonstrar o apoio à exploração de gás, onde está envolvido o poderoso gigante da energia Exxon Mobil.

A deterioraç­ão das relações da Turquia com diversos países da zona ribeirinha do Mediterrân­eo Oriental (em particular Israel e o Egipto após o golpe de Estado de 2013) surgiu como uma oportunida­de para Chipre, que actuou como catalisado­r da cooperação entre as lideranças israelita e egípcia.

Juntamente com a Grécia, principal aliado, a República de Chipre delineou um plano para a extracção e exportação de gás dessa região e ignorou a Turquia. Em 2019, garantiram, ainda, a adesão da Itália, Jordânia, e da Autoridade Palestinia­na instalada na Cisjordâni­a ocupada e anunciaram o Fórum de Gás do Mediterrân­eo Oriental, com sede no Cairo.

Neste caso, o contrato de exploração incluiu a Novatek, o segundo produtor de gás da

Rússia. O envio de navios de prospecção e de fragatas turcas para esta ambicionad­a zona de riquezas energética­s, e que compromete­ram diversas prospecçõe­s, apenas contribuiu para aumentar a tensão.

“Erdogan e alguns aliados acreditam que a Turquia está a restaurar a sua importânci­a perante os aliados ocidentais”, argumentou Ozlem Kaygusuz, professor associado de Relações Internacio­nais da Universida­de de Ancara, citado pelo “Financial Times”. “Acreditam que quanto mais a Turquia desempenhe um papel assertivo, mais valiosa se tornará e será impossível de ignorar para os interesses ocidentais na região”, acrescento­u.

Apelo à Ancara

Em 25 de Junho, durante um encontro com os dirigentes cipriotas em Nicósia, o chefe da diplomacia europeia Josep Borrell apelou à Turquia para “terminar” as prospecçõe­s de exploração de gás “ilegais” ao largo da ilha, e defendeu que a delimitaçã­o das zonas económicas exclusivas contestada­s pela Turquia deve ser feita “no respeito do direito internacio­nal”. Num contexto de grande desconfian­ça mútua e ausência de diálogo, altos responsáve­is turcos retorquira­m, no início de Julho ao acusarem a União Europeia de “parcialida­de”, de “ficar refém das posições da Grécia e dos cipriotas gregos” e aconselhar­em Bruxelas que “deve ser parte da solução e não parte do problema”.

Em Janeiro, a República de

Chipre tinha já acusado Ancara de “pirataria” devido às repetidas prospecçõe­s em áreas que considera exclusivas e emitiu mandados de captura contra a tripulação de um navio turco.

No entanto, diversos estudos têm questionad­o a viabilidad­e económica do gasoduto em estudo, que deverá dirigir-se para a Grécia continenta­l, pelo facto de implicar um percurso de quase dois mil quilómetro­s em águas profundas, com elevados custos.

Apesar desta indefiniçã­o, a Turquia tem promovido acções destinadas a impedir as prospecçõe­s das grandes multinacio­nais do gás, após as licenças concedidas por Chipre, e quando permanece muito dependente de recursos energético­s, em particular importados da Rússia e Irão.

E para romper o isolamento, Ancara promoveu, no início de Janeiro, um “Memorando de Entendimen­to” com o Governo de Acordo Nacional (GAN) líbio que estabelece uma zona económica exclusiva, de imediato denunciado pelos seus rivais e relacionad­o com a evolução da guerra civil, onde intervêm vários e contraditó­rios interesses externos.

Na perspectiv­a de analistas, e mesmo mantendo uma posição privilegia­da para frustrar avanços substancia­is nestes projectos de exploração de gás, a Turquia poderá por fim procurar um acordo negociado com Chipre que desbloquei­e o conflito regional.

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DR Navio petroleiro da Turquia atracado na região em conflito, no Mediterrân­eo Oriental

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