A glória do novo coronavírus
Fossem os países do mundo governados com mais humanidade do que política, com mais ciência do que economia, com mais cultura do que entretenimento, com mais justiça do que polícia e exércitos, talvez não sentíssemos hoje como utópica a esperança à qual desesperadamente nos queremos agarrar, para sairmos deste susto mundial provocado pelo coronavírus.
E, tanto pelo mundo fora como em Angola, as atitudes e posturas dos governos, a capacidade individual dos seus presidentes e ministros, e a eficiência colectiva das instituições, têm reveladoclaramente - que só são capazes de fazer em tempos de crise aquilo que sabem fazer em tempos “normais”. Mas não será legítimo, humano, esperar de quem nos governa algum verdadeiro despertar (de sensibilidade, de compaixão, de humanidade, de eficiência e de competência) que não tivesse sido, genuinamente, demonstrado antes?
Mais, para os distraídos assintomáticos, os menos vigilantes, os românticos e generosos militantes da esperança, os que oferecem a segunda face depois de receber uma chapada na primeira, oxalá a crise sirva para nos abrir os olhos.
O que estava mal antes da crise, o que funcionava mal e o que se fazia mal, resulta de razões objectivas que, enquanto não forem atacadas (se os condicionalismos históricos permitirem, e aí é que está o problema...) não haverá mudança. Cabe a cada país equacionar e resolver o seu caso concreto. Assumir as suas limitações, e entender o que os levou a acreditar (pela expressão do voto, em princípio, democrático) num Trump nos EUA, num Bolsonaro no Brasil - que são os casos mais intrigantes e emblemáticos - e em cada país especificamente, nos líderes que têm.
Da liderança espera-se capacidade para gerir as consequências socioeconómicas das crises. E isso requer a mobilização de todas as vontades e recursos para resolver os problemas por elas causadas na vida das populações, dos trabalhadores em geral (formais e informais), dos empresários, da juventude e dos estudantes, dos intelectuais e artistas, e sobretudo, no caso desta crise, dos trabalhadores da saúde.
Tendo-se tornado, para todos, a vida muito mais difícil nesta inesperada fase de longa emergência sanitária mundial, é natural que se re-questione tudo, que se re-equacione o sentido que faz sermos aquilo que somos (e que temos sido), a forma como vivemos. Nenhum cidadão do mundo escapa hoje a isso. Deveremos aproveitar esta oportunidade para as transformações positivas que ela oferece. É como se, de repente, fossemos todos mais sensíveis às injustiças, e ao mesmo tempo ousássemos achar que este é o momento de exigir uma melhor liderança.
Porque não aproveitar esta crise como uma oportunidade para se alterarem os paradigmas, e se encarar a Humanidade como um todo? Exigir dos líderes que pensem de forma global, não na perspectiva economicista reinante, na defesa dos interesses unicamente dos seus países, mas na perspectiva humanista que obrigue à solidariedade e empatia para com aqueles que necessitam de sair das situações preocupantes em que se encontram. Precisa-se de líderes que percebam a importância de contar com as opiniões de todos, de saber ir buscá-las, para se atingirem os vários objectivos que vêm sendo traçados de acabar com a pobreza, e trazer justiça social para o mundo.
No nosso caso, se o país já não estava bem antes do coronavírus - ainda não tendo havido tempo para ver os resultados da nova governação iniciada em finais de 2017 - e se já uma grande maioria da população vivia em situação crítica (4 em cada 10 angolanos com um nível de consumo abaixo da linha da pobreza, estimada pelo INE em 12.181 kwanzas/mês), e tardando a consolidação do nosso processo democrático, é compreensível que os cidadãos tenham motivos para exigir mudanças.
Temos vontade de ver o nosso país andar para a frente, libertar-se dos estigmas que se lhe colam à pele, de corrupção, de má governação, de falta de investimento na juventude, dos pobres indicadores de saúde, entre outros. Onde e como iremos buscar a nova maneira de fazer, a energia e os recursos para mudarmos o que está mal, o que desconseguimos nos momentos de abundância? Será que podemos fazer da actual escassez a solução que nos dará o empurrão que necessitamos?
Não haveria que tentar algo novo? Despartidarizar a sociedade e o Estado, mas de forma mais firme e eficaz. Exigir seriedade e esforço, a busca da competência sem exibicionismo, o sentimento de termos as mangas arregaçadas e darmos todos, cada um, o nosso melhor. Conceber e pôr em prática um novo modelo de desenvolvimento em que o Estado, a sociedade civil e o sector privado, desempenham papéis fortes, autónomos e complementares... A liderança terá de ser capaz de imprimir a esse processo o sentido de empenho colectivo, em que os únicos que têm que sair vitoriosos são a dignidade do nosso povo, a sua saúde e a sua educação, o direito ao emprego e à habitação, o direito a uma plena justiça.
Pois não temos grande margem de manobra: o “inocente” e invisível novo coronavírus veio agravar a situação mundial e desafiar a capacidade das lideranças. Apenas cumpre a sua missão natural: multiplicar-se e sobreviver. Sem saber que veio pôr em causa a ordem estabelecida e abalar a aparente solidez de cada sociedade. Causando imensa dor, e ceifando tantas vidas. Para vencê-lo e estar preparada para os vírus que virão, a Humanidade teria que despojar-se do “estabelecido” e das amarras que a obrigam a continuar como está. Temos de fazer a nossa parte, em nossa casa, no nosso país. Senão o vírus... e a crise - que ele, “sem querer”, nos causou - sairão vitoriosos.
E o bichinho espantar-se-á com a fragilidade dos Homens, que sempre se acharam seres superiores.