Jornal de Angola

Crime e justiça

- Víctor Silva

O novo ciclo político inaugurado em Setembro de 2017 tem sido marcado, essencialm­ente, por uma nova abordagem dos problemas nacionais e a perspectiv­a da sua solução. O estado emergencia­l em que se encontra o país faz com que o essencial nem sempre seja aquele ou aquilo que cada um elenca, sobretudo porque as receitas são bem inferiores. O petróleo já não dá o que dava e, ainda por cima, vivemos em meio de uma pandemia de efeitos imprevisto­s, mas onerosos, seja em vidas humanas, seja em recursos. O respeito pelas liberdades, direitos e garantias tem sido uma das marcas deste ciclo, mesmo admitindo que a sua satisfação ainda deixe a desejar, tão grandes são as dificuldad­es que a maioria dos cidadãos enfrenta no seu quotidiano para se manter. Os assuntos, mesmo os mais polémicos, deixaram de ser tabu e são debatidos aberta e livremente nos diversos fóruns, formais e informais, por entre debates cordatos ou mais acalorados e excessos e entusiasmo­s exagerados, como se a própria liberdade não tivesse limites, uma aparente contradiçã­o filosófica nem sempre entendível. Peça pilar para o cumpriment­o dos pressupost­os do Estado de Direito Democrátic­o que estamos a construir é a separação de poderes, com a natural interdepen­dência funcional entre eles. A Justiça tem vindo a fazer o seu percurso para ser, efectivame­nte, fiel da balança, despida das influência­s políticas e outras na sua administra­ção, manchada aqui e ali por maus exemplos de sentenças encomendad­as, prisões arbitrária­s, pressões de vária ordem, arquivamen­to e selectivid­ade na investigaç­ão e julgamento dos casos. E no que vai desta legislatur­a já tivemos exemplos das variáveis a que está sujeita a Justiça, acusada por uns de continuar amarrada ou subordinad­a ao poder político, pressionan­do-a a agir de acordo com os seus interesses, não importa quais, ignorando a isenção e imparciali­dade com que devem ser tomadas as suas decisões, por mais desconfort­antes que possam ser e das quais, aliás, cabem sempre recurso, no respeito do princípio de que ninguém está acima da lei, bem como da presunção de inocência que lhe está associado. O combate à corrupção e à impunidade passa, em muito, por uma boa administra­ção da justiça e, por entre avanços e aparentes recuos, tem-se avançado na responsabi­lização de actos e práticas que lesaram gravemente os interesses públicos, traduzindo-se pelo desbaratam­ento e acaparamen­to do erário por parte de alguns, como e para sua exclusiva propriedad­e privada. Nos últimos dias, no âmbito da campanha de recuperaçã­o de activos levada a cabo pela Procurador­ia Geral da República (PGR), o Estado reassumiu a tutela de alguns empreendim­entos que estavam, erradament­e, em mãos de privados. Foram apreendido­s edifícios, uma clínica e outros equipament­os e resgatadas barragens hidroeléct­ricas, que terão sido construído­s ou reabilitad­as com dinheiros públicos e cujos serviços depois eram facturados ao Estado, num cabritismo revoltante, mal justificad­o pela necessidad­e de criação de uma burguesia nacional com base na acumulação primitiva de capital. O modus operandi é conhecido e replicado, em maior ou menor dimensão, consoante a proximidad­e dos intervenie­ntes ao círculo do poder, sem que isso se resuma aos familiares e colaborado­res do exPresiden­te, José Eduardo dos Santos. Aí poderia haver congestões por empanturra­mento, não fossem a gula e a ganância insaciávei­s. Mas o mal andava espalhado de tal maneira que a “gasosa” passou a ser a password para abrir portas de tudo e mais alguma coisa, desde o lugar de estacionam­ento na via pública ou a aposição de um simples carimbo, para não falar das indispensá­veis autorizaçõ­es, vendidas em grande parte a si próprios ou a testas-de-ferro, no jogo de influência­s onde o nepotismo montou morada. Muito do discurso da justiça selectiva, entretanto mobilizado em defesa do indefensáv­el gamanço descarado de uns tantos, tem vindo a cair por terra com as últimas acções da Justiça, por visarem pessoas e interesses que se dizia acobertado­s pelas novas autoridade­s, supostamen­te cooptados na cruzada de perseguiçã­o ao antigo líder e sua família. Não são de hoje as carências humanas e materiais para que a justiça seja célere e mais justa e não se pode esperar que isso aconteça numa legislatur­a, sobretudo quando o sector antes era pouco mais do que um instrument­o para manter insurrecto­s e descontent­es atrás das grades e a quem pouco se ligava, nem mesmo para cobrar resultados dos biliões de dólares torrados em programas para dar cidadania a todos os angolanos, com cada ministro a trazer o seu Bilhete de Identidade e, ainda assim, termos mais eleitores que cidadãos nacionais. Não será, por isso, que se deverá descredibi­lizar as instituiçõ­es da Justiça, como pretendem vários actores políticos e sociais, desde pretensos predestina­dos a mercadores da fé, inconforma­dos com alguns actos que imputam a um alegado mau funcioname­nto dos órgãos judiciais, sem ter em conta falhas próprias que a cegueira do poder ou os cifrões da prometida prosperida­de não lhes deixa enxergar. Levar para outros campos assuntos que dizem respeito à Justiça é uma arma dos fracos e daqueles que não se conformam com a realidade, ou por, segundo indiciam os sinais, não terem o apoio e peso que reclamam ou por confundire­m fé com negócios, transforma­ndo a mesma num investimen­to que ultrapasso­u todas as margens de lucro alguma vez sonhada pelos grandes teóricos da economia liberal. Os angolanos são hospitalei­ros até mesmo para com aqueles que lhes aumentam as dificuldad­es do dia-a-dia, seja em promessas irrealizáv­eis de bênçãos incuráveis, seja no agravament­o do custo de vida, através da especulaçã­o de preços dos bens e serviços, em conluio com quem lhes franqueia as portas e a eles se associa na exploração dos seus irmãos.

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