Crime e justiça
O novo ciclo político inaugurado em Setembro de 2017 tem sido marcado, essencialmente, por uma nova abordagem dos problemas nacionais e a perspectiva da sua solução. O estado emergencial em que se encontra o país faz com que o essencial nem sempre seja aquele ou aquilo que cada um elenca, sobretudo porque as receitas são bem inferiores. O petróleo já não dá o que dava e, ainda por cima, vivemos em meio de uma pandemia de efeitos imprevistos, mas onerosos, seja em vidas humanas, seja em recursos. O respeito pelas liberdades, direitos e garantias tem sido uma das marcas deste ciclo, mesmo admitindo que a sua satisfação ainda deixe a desejar, tão grandes são as dificuldades que a maioria dos cidadãos enfrenta no seu quotidiano para se manter. Os assuntos, mesmo os mais polémicos, deixaram de ser tabu e são debatidos aberta e livremente nos diversos fóruns, formais e informais, por entre debates cordatos ou mais acalorados e excessos e entusiasmos exagerados, como se a própria liberdade não tivesse limites, uma aparente contradição filosófica nem sempre entendível. Peça pilar para o cumprimento dos pressupostos do Estado de Direito Democrático que estamos a construir é a separação de poderes, com a natural interdependência funcional entre eles. A Justiça tem vindo a fazer o seu percurso para ser, efectivamente, fiel da balança, despida das influências políticas e outras na sua administração, manchada aqui e ali por maus exemplos de sentenças encomendadas, prisões arbitrárias, pressões de vária ordem, arquivamento e selectividade na investigação e julgamento dos casos. E no que vai desta legislatura já tivemos exemplos das variáveis a que está sujeita a Justiça, acusada por uns de continuar amarrada ou subordinada ao poder político, pressionando-a a agir de acordo com os seus interesses, não importa quais, ignorando a isenção e imparcialidade com que devem ser tomadas as suas decisões, por mais desconfortantes que possam ser e das quais, aliás, cabem sempre recurso, no respeito do princípio de que ninguém está acima da lei, bem como da presunção de inocência que lhe está associado. O combate à corrupção e à impunidade passa, em muito, por uma boa administração da justiça e, por entre avanços e aparentes recuos, tem-se avançado na responsabilização de actos e práticas que lesaram gravemente os interesses públicos, traduzindo-se pelo desbaratamento e acaparamento do erário por parte de alguns, como e para sua exclusiva propriedade privada. Nos últimos dias, no âmbito da campanha de recuperação de activos levada a cabo pela Procuradoria Geral da República (PGR), o Estado reassumiu a tutela de alguns empreendimentos que estavam, erradamente, em mãos de privados. Foram apreendidos edifícios, uma clínica e outros equipamentos e resgatadas barragens hidroeléctricas, que terão sido construídos ou reabilitadas com dinheiros públicos e cujos serviços depois eram facturados ao Estado, num cabritismo revoltante, mal justificado pela necessidade de criação de uma burguesia nacional com base na acumulação primitiva de capital. O modus operandi é conhecido e replicado, em maior ou menor dimensão, consoante a proximidade dos intervenientes ao círculo do poder, sem que isso se resuma aos familiares e colaboradores do exPresidente, José Eduardo dos Santos. Aí poderia haver congestões por empanturramento, não fossem a gula e a ganância insaciáveis. Mas o mal andava espalhado de tal maneira que a “gasosa” passou a ser a password para abrir portas de tudo e mais alguma coisa, desde o lugar de estacionamento na via pública ou a aposição de um simples carimbo, para não falar das indispensáveis autorizações, vendidas em grande parte a si próprios ou a testas-de-ferro, no jogo de influências onde o nepotismo montou morada. Muito do discurso da justiça selectiva, entretanto mobilizado em defesa do indefensável gamanço descarado de uns tantos, tem vindo a cair por terra com as últimas acções da Justiça, por visarem pessoas e interesses que se dizia acobertados pelas novas autoridades, supostamente cooptados na cruzada de perseguição ao antigo líder e sua família. Não são de hoje as carências humanas e materiais para que a justiça seja célere e mais justa e não se pode esperar que isso aconteça numa legislatura, sobretudo quando o sector antes era pouco mais do que um instrumento para manter insurrectos e descontentes atrás das grades e a quem pouco se ligava, nem mesmo para cobrar resultados dos biliões de dólares torrados em programas para dar cidadania a todos os angolanos, com cada ministro a trazer o seu Bilhete de Identidade e, ainda assim, termos mais eleitores que cidadãos nacionais. Não será, por isso, que se deverá descredibilizar as instituições da Justiça, como pretendem vários actores políticos e sociais, desde pretensos predestinados a mercadores da fé, inconformados com alguns actos que imputam a um alegado mau funcionamento dos órgãos judiciais, sem ter em conta falhas próprias que a cegueira do poder ou os cifrões da prometida prosperidade não lhes deixa enxergar. Levar para outros campos assuntos que dizem respeito à Justiça é uma arma dos fracos e daqueles que não se conformam com a realidade, ou por, segundo indiciam os sinais, não terem o apoio e peso que reclamam ou por confundirem fé com negócios, transformando a mesma num investimento que ultrapassou todas as margens de lucro alguma vez sonhada pelos grandes teóricos da economia liberal. Os angolanos são hospitaleiros até mesmo para com aqueles que lhes aumentam as dificuldades do dia-a-dia, seja em promessas irrealizáveis de bênçãos incuráveis, seja no agravamento do custo de vida, através da especulação de preços dos bens e serviços, em conluio com quem lhes franqueia as portas e a eles se associa na exploração dos seus irmãos.