Tenho fé na humanidade, apesar da monstruosidade que ainda vemos
Apesar de ser hoje uma pergunta clichê, as repostas ainda surpreendem. No seu caso, ainda deposita fé na presumida sofisticação e sentido de civilidade do homem contemporâneo?
Sim, tenho fé na humanidade, apesar de toda a monstruosidade que ainda vemos acontecer a cada dia. Se não tivesse essa fé, provavelmente já não seria um artista. Há muita gente que vive com a nostalgia do passado, sempre a augurarem um suposto apocalipse. Estou consciente de muitos desafios que temos que enfrentar. Vivemos num mundo onde as imagens de toda espécie de violência tornaram-se o pão nosso de cada dia. Por isso, essa fé não alimentada por nenhum dogma resume-se na luta diária pela dignidade e respeito, daquilo que consideramos valores inalienáveis, quando falamos de humanidade. Felizmente, existe ainda muita gente disposta a assumir essa luta.
Um artista angolano em movimento pelo mundo. Fale-nos um pouco daquilo que mais lhe agrada quando está a rodar o mundo com Angola na bagagem?
Nem sempre levo Angola na minha bagagem. Já fui convidado a lugares para criar obras que reflictam sobre a realidade de determinados contextos e isso é um desafio que tenho imenso prazer de enfrentar. Já estive em muitas latitudes do planeta onde, por vezes, mais do que um artista, sentia-me como um curandeiro. Quando a criação está dependente de ouvir as pessoas, auscultar o que lhes move por dentro. Este acto de empatia é das coisas que mais me agrada. A obra de arte é só uma consequência deste processo que, logo a seguir à sua criação, passa a ter vida própria.
Há uma aberta discussão sobre a condição do artista. No seu olhar, enquanto parte integrante deste grupo, como interpretar hoje, em Angola, a condição social do artista?
A situação do artista hoje é extremamente preocupante, não só em Angola, mas em todo mundo. Vivemos da interacção com o público. É urgente que se criem políticas de apoio à classe artística. As pessoas nunca poupam palavras para dizer o quanto se orgulham de ser angolanas, mas poucas têm consciência de que os artistas, como principais protagonistas para manter essa matriz cultural viva, têm sobrevivido a várias crises num acto quase heróico. Esta pandemia só veio agudizar mais os problemas que já existiam e a negligência do Estado quanto à classe artística.
Sonhou-se bastante, e talvez já fosse tempo, com um Museu de Arte em Angola. Um museu de arte mudaria completamente o quadro? É honesto falar-se em circuito do mercado artístico, sem um museu que controle e coordene esse movimento?
Não cabe ao museu controlar e coordenar o mercado, embora possa ter uma grande influência sobre o mesmo, uma vez que pertencer à colecção de um museu é um dos mecanismos de legitimação dos artistas. O mercado artístico tem sido estimulado por iniciativas privadas. Acredito que a criação de um museu por certo iria estimular o crescimento do mercado da arte, pois muitos museus possuem colecções, com obras selecionadas por uma comissão de especialistas nesta área. Isto seria uma maneira não somente de preservarmos a nossa memória, mas também para que o Estado possa contribuir financeiramente e de forma responsável para o meio artístico, através da aquisição de obras.
Com a pandemia vincou a suposição de que o consumo do produto artístico é maioritariamente feito por estrangeiros. No fundo, o que acha que deve ser feito, a nível de revisão legislativa ou programas de acção do Ministério da Cultura, para que este cenário se inverta e possamos ter as famílias angolanas a consumir arte angolana?
A necessidade de consumir a arte é algo que tem a ver com a nossa educação, com a oportunidade de ter acesso às criações dos artistas. E este interesse tem que ser estimulado desde as gerações mais novas, para que esse cenário mude no futuro. Não basta criar leis. Temos uma elite que, mesmo quando viaja para Europa de férias, com a família, onde existem milhares de museus, passam mais tempo em centros comerciais. O Ministério da Cultura deveria trabalhar em estreita relação com o Ministério da Educação, para promover o acesso da arte nas escolas, editando livros ou até mesmo organizando visitas às exposições com os alunos, criando programas em que os artistas possam interagir com a classe estudantil. Penso que é importante que um jovem hoje conheça a obra de um artista como o Antônio Ole, dá mesma forma que se deu a conhecer os livros de um escritor como Pepetela.
Luanda ainda continua a ser o grande centro, encurralando quase todos artistas para este meio, tanto em vivência como em produção. Acha que a arte produzida hoje em Luanda é justamente representativa, em termos de fruição temática e noção global do país?
De maneira alguma. Embora Luanda tenha acolhido, durante todos estes anos e principalmente nos anos de guerra, pessoas de toda a parte do país, pela dimensão e a diversidade cultural, existem questões essenciais da nossa identidade que nos escapam nesta vida frenética da capital. A criação do artista também é um resultado do meio onde vive. Por isso, temos que ter em atenção a especificidade da linguagem artística e distintas narrativas nas diferentes regiões do país.
Foi Prémio Nacional de Cultura e Artes na edição de 2012. Desta data até hoje, sente o reconhecimento das instituições que tutelam a cultura em Angola?
O prémio em 2012 foi-me concedido porque, naquele ano, o critério era premiar um artista que estivesse com uma carreira internacional notável. Entre 2011 e 2012, tinha participado em quinze exposições internacionais, incluindo bienais e museus. Fiquei feliz também por receber uma carta, neste ano, da ex-ministra da Cultura, Maria da Piedade de Jesus, a felicitar-me por ter ganhado o projecto para criação do Memorial dos Africanos Escravizados em Lisboa. Mas devo dizer que nunca me importei em trabalhar à margem do reconhecimento das instituições. O reconhecimento que mais valorizo é o da comunidade de artistas e fazedores de cultura, com a qual tenho colaborado há mais de 20 anos. Contudo, estarei sempre aberto em contribuir com o conhecimento que fui acumulando durante estes anos para o melhoramento das instituições culturais.
No que toca às galerias, não são poucos os artistas que reclamam das cláusulas contratuais. Da sua experiência, como artista, como vê esta relação artista-galeria no nosso cenário actual e o que pode ser melhorado?
O aparecimento de galerias de arte comerciais em Angola é relativamente recente. Os artistas ficaram muitos anos a vender directamente, sem qualquer tipo de intermediação, e hoje é difícil para muitos deles cumprirem certas cláusulas contratuais, geralmente ligadas à exclusividade e à percentagem das vendas. Aconteceu o mesmo em Portugal, nos anos 80, e a solução que muitas galerias usaram naquela época era pagar um salário ao artista, afim de poder manter alguma fidelidade ao contrato. O artista que paga uma certa percentagem à galeria tem que exigir da galeria mais do que vendas, também uma estratégia da promoção do trabalho. É preciso estarmos atentos, enquanto os galeristas investem na nossa obra, para que seja uma relação equilibrada.
Há quem encontra pontos positivos na forma como a Covid-19 destapou os problemas e as diferenças sociais. Na sua visão, como artista em movimento pelo mundo, enxerga coisas boas?
Há várias lições que temos aprendido com este vírus. Uma delas é termos que olhar, cuidar da nossa casa, antes de partirmos para a conquista do mundo. Mas estes aspectos positivos só serão efectivos se tivermos a coragem de fazer mudanças substanciais no nosso comportamento, num cenário pós-pandemia.
Na quinta edição do Fucking Globo, vislumbrou-se a seguinte ideia num dos trechos do seu texto: “Contra Inteligência Artística - CIA”. Apesar de o mundo ir avançado em vários estádios e liberdades, acredita que a arte, no geral, ainda continua sujeita à censura?
Muitas vezes, quando os artistas expressam publicamente as suas opiniões, que por vezes ferem o poder estabelecido, a forma maldosa, mas também irónica de neutralizar a sua opinião, era conotálos à C.I.A. O tal fantasma externo que muitos políticos e os seus fieis algozes ressuscitam sempre que necessário para se protegerem das críticas e julgamentos. Num país onde não se leva a sério a cultura em todas suas vertentes, não existe a necessidade de censurar a criação artística. Para quê censurar os livros, se ninguém os lê? Seja pela alta taxa de analfabetismo, ou pelo preço que custa um livro. Mas a indiferença e a negligência quanto ao estado da educação e da cultura não deixam de ser um mecanismo de censura, provavelmente um dos piores.
Parece que a Covid-19 interrompeu as agendas do seu calendário, que incluía passagens por Suíça, Bélgica, França, Inglaterra. Como ficou o acerto de uma série de actividades que estavam por acontecer na Europa?
Muitas ainda vão acontecer e outras reabriram no mês passado. Há projectos que foram adiados para o próximo ano. Mas não tomo isso como uma tragédia, o importante agora é que estejamos unidos para atravessar essa pandemia, sem que ninguém fique pelo caminho.
Por Luanda, o que tem feito neste tempo de confinamento e introspecção?
Ainda não tive tempo para introspecção. Mesmo com o cancelamento de algumas exposições, têm sempre surgido projectos para realizar, como foi o caso do último vídeo que realizei para o museu HKW (Haus der Kunst der Welt) em Berlin, intitulado “Dor Fantasma Carta Aberta a Henry A. Kissinger”, que pode ser visto no website do museu. Aqui em Luanda tenho estado a trabalhar num novo projecto colectivo, um fundo de apoio à criação de curtas-metragens e divulgação do cinema, que se chama KinoYetu. Penso que é preciso reagirmos a letargia do confinamento, com os cuidados necessários, para não pôr em risco a nossa saúde. De resto, considero-me um boêmio antecipadamente reformado, na esperança que melhores dias virão.