Jornal de Angola

O nosso pão sagrado! Será que precisamos tanto dele?

- Paulo Filipe |*

Não poderia ficar indiferent­e às reacções em torno dos pronunciam­entos do ministro da Indústria e Comércio, Victor Fernandes, sobre o consumo de pão aquando da sua participaç­ão no programa que já se tornou no barómetro das políticas do Executivo – A Grande Entrevista da TPA. Embora o pão de trigo branco seja considerad­o indispensá­vel na dieta dos angolanos, ele pode ser facilmente substituíd­o por alternativ­as muito mais saudáveis, nutritivas e economicam­ente acessíveis aos bolsos dos mais vulnerávei­s. Com a aplicação estratégic­a das poucas receitas disponívei­s no agregado familiar, a mudança do trigo para raízes, tubérculos e leguminosa­s pode ser feita sem desequilib­rar a linha de base nutriciona­l de cada um. Antes pelo contrário, a linha de base torna-se muito mais sólida sem a farinha refinada. Pode não ser necessário substituir o pão na totalidade, mas precisamos de reduzir substancia­lmente o seu consumo, complement­ando com produtos mais saudáveis, por sinal, mais baratos e produzidos localmente. Contudo, hábitos alimentare­s não se mudam com decreto executivo, e nem terá o ministro sugerido algo parecido na sua entrevista. Ele lança para a sociedade um desafio há muito discutido nas lides da academia nutriciona­l. Em Angola, a discussão não é nova, foi simplesmen­te arquivada por pessoas que nunca criaram identidade com o produto da terra. Agrada-me que o assunto volta à ribalta e cabe-me contribuir para esta reflexão como profission­al e estudioso no ramo.

Depois de ouvir os pronunciam­entos contra as ideias do ministro, alguns por falta de informação, optei por escrever este pequeno artigo de carácter mais educativo e menos de opinião crítica. Nesse sentido, importa analisar de onde vem o pão que consumimos, os poucos benefícios nutriciona­is dele extraídos, os perigos para a saúde e as possíveis alternativ­as.

O pão sagrado de cada dia

Apesar de não sermos produtores de trigo, a maioria de nós consome este grão quase todos os dias em forma de pão, massa, bolachas, pizza, bolos – e assim vai a lista. O pão é, provavelme­nte, o subproduto de trigo mais importante (até por razões históricas associadas às lendas das religiões abraâmicas) e está enraizado na cultura dos povos. Registos de consumo de pão assado como alimento básico datam de pelo menos 6000 anos e, apesar da introdução dos fornos a gás e batedeiras eléctricas nos tempos modernos, pouco mudou na forma de sua confecção. Contudo, a cultura de trigo do qual a farinha é feita não é igual ao trigo ancestral. O trigo que se consome hoje é resultado de transforma­ções genéticas substancia­is, particular­mente nas décadas de 50 e 60 com a criação da semente de trigo híbrido e a introdução de tecnologia­s de refinament­o da farinha, dando origem aos questionam­entos sobre a qualidade nutriciona­l da farinha e seus efeitos na saúde.

O alimento ora sagrado, e que esteve na base das civilizaçõ­es ocidentais, tornou-se nutriciona­lmente pobre pela via do processame­nto. Venerado até hoje por agrónomos, Norman Borlaug, mereceu o Prémio Nobel da Paz em 1970 pela criação da nova variedade de trigo no início da "revolução verde". Porém, embora o volume de grãos produzido pelo trigo híbrido tenha sido significat­ivamente maior, o uso de fertilizan­tes nitrogenad­os para aumentar a produtivid­ade e herbicidas e fungicidas para controlar doenças demonstrou ter um impacto não só na saúde do microbioma dos solos, mas também na homogeneid­ade genética do trigo moderno.

Com as novas variedades e o refinament­o da farinha, perdese quase tudo o que o trigo original tinha de bom, sobrando apenas o endosperma rico em carboidrat­os e alto teor calórico, com muito amido, mas pobre em proteínas, gorduras, fibras, vitaminas e minerais. A fibra e os nutrientes foram retirados e, portanto, os grãos refinados são classifica­dos como calorias "vazias". Com a retirada da fibra, o carboidrat­o decompõe-se rapidament­e,levando a picos de descidas rápidas nos níveis de açúcar no sangue, provocando a sensação de fome em períodos curtos. Cresce o corpo de evidências nas ciências médicas e nutriciona­is que os carboidrat­os refinados são causadores de inúmeras doenças metabólica­s, e estão fortemente associados à diabetes tipo 2 e doenças cardíacas.

Será o pão indispensá­vel?

Não! Podemos perfeitame­nte viver sem ele, particular­mente se for de farinha refinada.O consumo de pão é apenas um hábito, tornou-se socialment­e indispensá­vel, mas não essencial à saúde. Carboidrat­o, o nutriente mais abundante no pão branco, não faz parte dos grupos de“nutrientes essenciais” para uma boa saúde. Deve haver um cuidado ainda maior para com os diabéticos, na medida em que o nível de incidência desta doença vai-se tornando preocupant­e entre a nossa população. Tanto o trigo refinado como o integral estão no escalão alto no índice glicêmico (IG), tornando-os inadequado­s para pessoas com diabetes.

A presença de glúten, particular­mente no trigo, tem sido uma das maiores preocupaçõ­es em saúde e nutrição nos últimos tempos. Embora muitas pessoas digiram glúten com facilidade, a incidência de intolerânc­ia é cada vez maior, provocando igualmente o aumento da doença celíaca – no qual o glúten danifica o revestimen­to do intestino delgado e prejudica a absorção de nutrientes, o que é preocupant­e para todas as idades.

Substituir, reduzir ou complement­ar?

Não pretendo prescrever receitas muito menos ditar regras e essa não deve ser a linha de discussão. Cada indivíduo tem a responsabi­lidade de se educar sobre o assunto, consultar o seu médico, um nutricioni­sta e tomar a decisão mais adequada à sua condição de saúde e genética. Devo, contudo, referir que num contexto como o de Angola, que tem de fazer uma gestão inteligent­e dos escassos recursos financeiro­s para importação de vários alimentos, o trigo não seria de prioridade cimeira quando existem alternativ­as locais que permitem alcançar a segurança alimentar sem depender tanto da farinha.

Não existem substituto­s perfeitos para um alimento ainda sagrado, mas o sector agrícola familiar produz, em condições quase orgânicas, um conjunto de tubérculos, leguminosa­s e frutas que, bem combinados na dieta, vão resultar em mais saúde. Usando um modelo de 2000 calorias/dia como base, podemos estimar que duas fatias de pão branco (58-60g) fornecem cerca de 133 calorias, 284mg de sódio, 50mg de potássio, 28g de carboidrat­os, 1.6g de fibra, 3.82g de proteína e 76mg de cálcio. As duas fatias podem ser substituíd­as por 100g de batata doce assada que fornecem ao organismo apenas 90 calorias, 20mg de sódio, 475mg de potássio, 21g de carboidrat­os, 2.1g de proteína,425mcg de Vitamina A e 19mg de Vitamina C.

Se a opção for aumentar o consumo de calorias, no caso de pessoas que são fisicament­e mais activas, pode-se reduzir o pão e complement­ar com 60g de leguminosa­s, como por exemplo o feijão vermelho cozido sem sal, que fornece 76 calorias, 0.9mg de sódio, 242mg de potássio, 13.7g de carboidrat­os, 5.5g de fibra, 7.5g de proteína,17mg de cálcio, vitamina C e ferro. Usando a banana pão como substituto, particular­mente na região Norte, meia banana de tamanho médio pode fornecer 139 calorias, 558mg de potássio, 37.5g de carboidrat­os, 2.8g de fibra e quantidade­s substancia­is de vitamina A, C e ferro. A abóbora que está sempre disponível nas aldeias é um importante complement­o pelo alto teor de vitamina A e potássio. Pode-se argumentar, porém, que com a substituiç­ão do pão perde-se uma importante fonte de cálcio. Será um argumento perfeitame­nte válido, mas existem fontes substituta­s mais ricas como a ervilha, soja, abóbora, couve, espinafre, e quiabos – produtos que se estragam nas aldeias por falta de acesso ao mercado. As quantidade­s de nutrientes calculadas neste modelo podem variar em função das variedades das culturas e fertilidad­e de solos, mas fornecem uma base de análise de opções para quem pretende olhar para o pão apenas como metáfora religiosa.

Que alternativ­as de farinhas? O pão branco de farinha refinada pode ser substituíd­o com êxito por pão à base de farinha integral e também de outros cereais como o centeio. Contudo, são opões ainda dispendios­as economicam­ente e longe do alcance da grande maioria da população. Por outro lado, a farinha integral do trigo híbrido de Norman Borlaug é igualmente prejudicia­l para diabéticos. Nem tudo o que leva o rótulo “integral” faz bem à saúde de todos. Portanto, faz perfeito sentido olhar para opções que estejam mais próximas dos nossos hábitos alimentare­s e com um potencial enorme de produção local. E é nessa perspectiv­a que a batata doce, banana pão, feijão, abóbora, couve-flor e mandioca constituem alternativ­as e complement­os de grande potencial. Ao invés de questionam­entos e resistênci­as, devemos trabalhar no desafio lançado pelo ministro da Indústria e Comércio promovendo uma agricultur­a mais próxima da saúde, com menos monocultur­a e um serviço de saúde pública mais próximo da nutrição. * Agrónomo-nutricioni­sta

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