O nosso pão sagrado! Será que precisamos tanto dele?
Não poderia ficar indiferente às reacções em torno dos pronunciamentos do ministro da Indústria e Comércio, Victor Fernandes, sobre o consumo de pão aquando da sua participação no programa que já se tornou no barómetro das políticas do Executivo – A Grande Entrevista da TPA. Embora o pão de trigo branco seja considerado indispensável na dieta dos angolanos, ele pode ser facilmente substituído por alternativas muito mais saudáveis, nutritivas e economicamente acessíveis aos bolsos dos mais vulneráveis. Com a aplicação estratégica das poucas receitas disponíveis no agregado familiar, a mudança do trigo para raízes, tubérculos e leguminosas pode ser feita sem desequilibrar a linha de base nutricional de cada um. Antes pelo contrário, a linha de base torna-se muito mais sólida sem a farinha refinada. Pode não ser necessário substituir o pão na totalidade, mas precisamos de reduzir substancialmente o seu consumo, complementando com produtos mais saudáveis, por sinal, mais baratos e produzidos localmente. Contudo, hábitos alimentares não se mudam com decreto executivo, e nem terá o ministro sugerido algo parecido na sua entrevista. Ele lança para a sociedade um desafio há muito discutido nas lides da academia nutricional. Em Angola, a discussão não é nova, foi simplesmente arquivada por pessoas que nunca criaram identidade com o produto da terra. Agrada-me que o assunto volta à ribalta e cabe-me contribuir para esta reflexão como profissional e estudioso no ramo.
Depois de ouvir os pronunciamentos contra as ideias do ministro, alguns por falta de informação, optei por escrever este pequeno artigo de carácter mais educativo e menos de opinião crítica. Nesse sentido, importa analisar de onde vem o pão que consumimos, os poucos benefícios nutricionais dele extraídos, os perigos para a saúde e as possíveis alternativas.
O pão sagrado de cada dia
Apesar de não sermos produtores de trigo, a maioria de nós consome este grão quase todos os dias em forma de pão, massa, bolachas, pizza, bolos – e assim vai a lista. O pão é, provavelmente, o subproduto de trigo mais importante (até por razões históricas associadas às lendas das religiões abraâmicas) e está enraizado na cultura dos povos. Registos de consumo de pão assado como alimento básico datam de pelo menos 6000 anos e, apesar da introdução dos fornos a gás e batedeiras eléctricas nos tempos modernos, pouco mudou na forma de sua confecção. Contudo, a cultura de trigo do qual a farinha é feita não é igual ao trigo ancestral. O trigo que se consome hoje é resultado de transformações genéticas substanciais, particularmente nas décadas de 50 e 60 com a criação da semente de trigo híbrido e a introdução de tecnologias de refinamento da farinha, dando origem aos questionamentos sobre a qualidade nutricional da farinha e seus efeitos na saúde.
O alimento ora sagrado, e que esteve na base das civilizações ocidentais, tornou-se nutricionalmente pobre pela via do processamento. Venerado até hoje por agrónomos, Norman Borlaug, mereceu o Prémio Nobel da Paz em 1970 pela criação da nova variedade de trigo no início da "revolução verde". Porém, embora o volume de grãos produzido pelo trigo híbrido tenha sido significativamente maior, o uso de fertilizantes nitrogenados para aumentar a produtividade e herbicidas e fungicidas para controlar doenças demonstrou ter um impacto não só na saúde do microbioma dos solos, mas também na homogeneidade genética do trigo moderno.
Com as novas variedades e o refinamento da farinha, perdese quase tudo o que o trigo original tinha de bom, sobrando apenas o endosperma rico em carboidratos e alto teor calórico, com muito amido, mas pobre em proteínas, gorduras, fibras, vitaminas e minerais. A fibra e os nutrientes foram retirados e, portanto, os grãos refinados são classificados como calorias "vazias". Com a retirada da fibra, o carboidrato decompõe-se rapidamente,levando a picos de descidas rápidas nos níveis de açúcar no sangue, provocando a sensação de fome em períodos curtos. Cresce o corpo de evidências nas ciências médicas e nutricionais que os carboidratos refinados são causadores de inúmeras doenças metabólicas, e estão fortemente associados à diabetes tipo 2 e doenças cardíacas.
Será o pão indispensável?
Não! Podemos perfeitamente viver sem ele, particularmente se for de farinha refinada.O consumo de pão é apenas um hábito, tornou-se socialmente indispensável, mas não essencial à saúde. Carboidrato, o nutriente mais abundante no pão branco, não faz parte dos grupos de“nutrientes essenciais” para uma boa saúde. Deve haver um cuidado ainda maior para com os diabéticos, na medida em que o nível de incidência desta doença vai-se tornando preocupante entre a nossa população. Tanto o trigo refinado como o integral estão no escalão alto no índice glicêmico (IG), tornando-os inadequados para pessoas com diabetes.
A presença de glúten, particularmente no trigo, tem sido uma das maiores preocupações em saúde e nutrição nos últimos tempos. Embora muitas pessoas digiram glúten com facilidade, a incidência de intolerância é cada vez maior, provocando igualmente o aumento da doença celíaca – no qual o glúten danifica o revestimento do intestino delgado e prejudica a absorção de nutrientes, o que é preocupante para todas as idades.
Substituir, reduzir ou complementar?
Não pretendo prescrever receitas muito menos ditar regras e essa não deve ser a linha de discussão. Cada indivíduo tem a responsabilidade de se educar sobre o assunto, consultar o seu médico, um nutricionista e tomar a decisão mais adequada à sua condição de saúde e genética. Devo, contudo, referir que num contexto como o de Angola, que tem de fazer uma gestão inteligente dos escassos recursos financeiros para importação de vários alimentos, o trigo não seria de prioridade cimeira quando existem alternativas locais que permitem alcançar a segurança alimentar sem depender tanto da farinha.
Não existem substitutos perfeitos para um alimento ainda sagrado, mas o sector agrícola familiar produz, em condições quase orgânicas, um conjunto de tubérculos, leguminosas e frutas que, bem combinados na dieta, vão resultar em mais saúde. Usando um modelo de 2000 calorias/dia como base, podemos estimar que duas fatias de pão branco (58-60g) fornecem cerca de 133 calorias, 284mg de sódio, 50mg de potássio, 28g de carboidratos, 1.6g de fibra, 3.82g de proteína e 76mg de cálcio. As duas fatias podem ser substituídas por 100g de batata doce assada que fornecem ao organismo apenas 90 calorias, 20mg de sódio, 475mg de potássio, 21g de carboidratos, 2.1g de proteína,425mcg de Vitamina A e 19mg de Vitamina C.
Se a opção for aumentar o consumo de calorias, no caso de pessoas que são fisicamente mais activas, pode-se reduzir o pão e complementar com 60g de leguminosas, como por exemplo o feijão vermelho cozido sem sal, que fornece 76 calorias, 0.9mg de sódio, 242mg de potássio, 13.7g de carboidratos, 5.5g de fibra, 7.5g de proteína,17mg de cálcio, vitamina C e ferro. Usando a banana pão como substituto, particularmente na região Norte, meia banana de tamanho médio pode fornecer 139 calorias, 558mg de potássio, 37.5g de carboidratos, 2.8g de fibra e quantidades substanciais de vitamina A, C e ferro. A abóbora que está sempre disponível nas aldeias é um importante complemento pelo alto teor de vitamina A e potássio. Pode-se argumentar, porém, que com a substituição do pão perde-se uma importante fonte de cálcio. Será um argumento perfeitamente válido, mas existem fontes substitutas mais ricas como a ervilha, soja, abóbora, couve, espinafre, e quiabos – produtos que se estragam nas aldeias por falta de acesso ao mercado. As quantidades de nutrientes calculadas neste modelo podem variar em função das variedades das culturas e fertilidade de solos, mas fornecem uma base de análise de opções para quem pretende olhar para o pão apenas como metáfora religiosa.
Que alternativas de farinhas? O pão branco de farinha refinada pode ser substituído com êxito por pão à base de farinha integral e também de outros cereais como o centeio. Contudo, são opões ainda dispendiosas economicamente e longe do alcance da grande maioria da população. Por outro lado, a farinha integral do trigo híbrido de Norman Borlaug é igualmente prejudicial para diabéticos. Nem tudo o que leva o rótulo “integral” faz bem à saúde de todos. Portanto, faz perfeito sentido olhar para opções que estejam mais próximas dos nossos hábitos alimentares e com um potencial enorme de produção local. E é nessa perspectiva que a batata doce, banana pão, feijão, abóbora, couve-flor e mandioca constituem alternativas e complementos de grande potencial. Ao invés de questionamentos e resistências, devemos trabalhar no desafio lançado pelo ministro da Indústria e Comércio promovendo uma agricultura mais próxima da saúde, com menos monocultura e um serviço de saúde pública mais próximo da nutrição. * Agrónomo-nutricionista