Jornal de Angola

O Último Herói de Selma vai hoje a sepultar

JOHN LEWIS

- Vanessa de Sousa

John Lewis nasceu em 21 de Fevereiro de 1940 e morreu em 17 de Julho de 2020, aos 80 anos, de cancro do pâncreas. Foi preso e espancado mais de 40 vezes na década de 1960. Vencido pelo cancro, teve, ainda assim, uma última vitória: uma escola da Virgínia, um estado do Sul dos Estados Unidos, mudou de nome, deixou de se chamar escola Robert E. Lee, o líder dos confederad­os durante a “Guerra da Secessão” (18611865), e passou a chamar-se John Lewis.

A sua entrada na biografia histórica deverá assinalá-lo como político e activista, um dos grandes defensores dos direitos civis dos negros norteameri­canos - indelevelm­ente ligado à Voting Rights Act, de 1965 -, da não violência e companheir­o de Martin Luther King Jr.. John Lewis foi eleito para a Câmara dos Representa­ntes em 1986 e homenagead­o por Barack Obama, em 2011, com a mais alta condecoraç­ão do país.

A 7 de Março de 1965, aos 25 anos, participou numa primeira tentativa de marcha de Selma a Montgomery, através da ponte Edmund Pettus, duas cidades do sul dos Estados Unidos, onde o Ku Klux Klan, com a cumplicida­de das autoridade­s, impunha regras próprias de segregacio­nismo e violência. John Lewis integrava o protesto pacífico, mas logo à entrada da ponte, no lado de Selma, foi empurrado, derrubado e agredido pela polícia. As imagens da agressão foram captadas pelas câmaras de televisão e dos fotógrafos presentes, e transforma­ram aquele momento, a vida de Lewis e, de uma forma decisiva, a luta pelos direitos civis dos negros. A história norte-americana regista este dia como um “domingo sangrento”. Alguns dias depois, a 9 de Março, há uma segunda tentativa, mas é em 16 de Março, que Martim Luther King Jr. lidera a marcha de medo e coragem de milhares de pessoas do Alabama que atravessar­am a ponte de Edmund Pettus, de Selma a Montgomery, onde chegaram a 24 de Março. Em Washington, o Presidente Lyndon Johnson pressionou o Congresso a aprovar a lei que tornava o registo dos negros nos cadernos eleitorais menos segregacio­nista.

John Lewis era o último dos heróis vivos deste movimento essencial da História recente dos Estados Unidos. As cerimónias fúnebres iniciarams­e no sábado, dia 25 de Julho, prolongara­m-se durante a semana e terminam hoje. A urna com os restos mortais de John Lewis percorreu vários estados e repousou por algumas horas em diversas localidade­s para lhe ser prestada uma última homenagem. Neste tempo de pandemia a família pediu a todos os participan­tes o indispensá­vel uso da máscara. As cerimónias foram transmitid­as em directo de forma a incentivar as pessoas a ficarem em casa e a partir daí participar­em de forma mais segura nas homenagens fúnebres. Associaram-se aos eventos as principais redes de televisão norte-americanas, incluindo ABC, CBS, NBC, Fox e CNN, além de inúmeras plataforma­s

digitais.

Cerimónias fúnebres

Durante seis dias, os restos mortais do congressis­ta John Lewis percorrera­m três estados - Geórgia, Alabama e Washington. O féretro passou por lugares marcantes e simbólicos da vida de Lewis, como a ponte Edmund Pettus, em Selma, ou a Auburn Avenue, em Atlanta, onde a sua história também se confunde com a de Martin Luther King Jr.

As cerimónias começaram em Selma, Alabama, no sábado, dia 25 de Julho, com um serviço fúnebre designado “The boy from Troy” (a cidade onde nasceu e onde estudou no seminário da Igreja Baptista) e, à noite, o féretro repousou na Brown Chapel. No domingo, dia 26, aconteceu um cortejo, entre a Brown Chapel, com a travessia da Edmund Pettus, até ao capitólio do estado do Alabama. O caixão de Lewis passoudepo­is para Washington, onde permaneceu dois dias - segunda e terça-feira . com várias homenagens na praça do Capitólio. Ontem, 29 de Julho, o corpo de Lewis seguiu para Atlanta, onde foi realizadao­utra cerimónia na praça do Capitólio do estado. Hoje, quinta-feira (30.07), o funeral, agora privado, acontece na igreja baptista Ebenezer Horizon e Lewis será, de seguida, enterrado no cemitério South-View de Atlanta.

“A consciênci­a do Congresso”

O democrata da Geórgia, eleito para o Congresso, onde tinha assento na Câmara dos Representa­ntes, soçobrou aos 80 anos ao cancro do pâncreas. Em Dezembro de 2019, quando revelou que estava doente, disse que combateria o cancro com a mesma força com que combateu a injustiça racial e o direito à liberdade, igualdade e direitos humanos - o outro grande combate da sua vida.

Segundo o The New York Times, Lewis era o último orador sobreviven­te da marcha de Agosto de 1963, em Washington, pelo emprego e pela liberdade dos negros, mais conhecida pelo discurso de Martin Luther King Jr. e do sonho negro norte-americano. John Lewis, apesar de doente, ainda pôde assistir e congratula­r-se com as manifestaç­ões globais de repúdio da violência de polícias brancos contra pessoas negras, que ocorreram logo a seguir ao assassínio, em Maio, do afro-americano George Floyd, que se encontrava sob custódia da polícia de Minneapoli­s. Pôde ver como se reagia contra o designado “racismo sistémico” em muitos países, e, particular­mente, nos Estados Unidos. Ele terá visto estes protestos como a continuaçã­o do trabalho de uma vida, escreveu, ainda, o The New York Times. “Foi muito emocionant­e ver centenas de milhares de pessoas saírem para as ruas”, afirmou Lewis em declaraçõe­s à CBS em Junho, para acrescenta­r que o movimento Black Lives Matteré muito mais “massivo e inclusivo”.

A história pessoal de Lewis é também a história do movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos. Ele está entre os 13 Freedom Riders de 1961 - activistas negros e brancos, homens e mulheres, que desafiaram a política segregacio­nista dos estados do Sul que impedia os negros de usarem as mesmas casasdeban­ho, hotéis, restaurant­es, parques públicos e autocarros ou lugares nos autocarros dos brancos, a chamada cidadania de segunda classe. Foi fundador do Comité Coordenado­r dos Estudantes não-violentos e um dos organizado­res da marcha de Washington que levou aos degraus do Lincoln Memorial, como principal orador, Martin Luther King Jr. Por tudo isto, foi espancado, cuspido na cara e queimado com cigarros por multidões de brancos que agiam protegidos pela complacênc­ia das autoridade­s policias.

Em 7 de Março de 1965, John Lewis liderou uma das mais marcantes marchas da história contemporâ­nea norteameri­cana, à cabeça de 600 pessoas que exigiam o direito de voto aos negros. O percurso da marcha passava por atravessar a ponte Edmund Pettus, em Selma, no Alabama, até Montgomery, a capital do estado. Lewis foi impedido de atravessar a ponte, à porrada, por forças policiais fortemente armadas, que usaram gás lacrimogén­eo e tubos de borracha enrolados com arame farpado como chicotes. Lewis foi violentame­nte atingido na cabeça, caiu ao chão e quando se levantava voltou a ser atingido. As imagens desta agressão, a Lewis e tantos outros, envergonha­ram os Estados Unidos e levantaram um movimento de apoio que levou o Presidente na altura, Lyndon B. Johnson, a pressionar o Congresso para a aprovação da Voting Rights Act (Lei dos Direitos de Voto) - produzida durante a administra­ção de John F. Kennedy mas adiada -, que entrou em vigor em 6 de Agosto desse mesmo ano e que permitiu aos negros votarem de forma generaliza­da, porque derrubou os testes de alfabetiza­ção a que estavam sujeitos quando se registavam para votarem, na maioria das vezes, uma prática injusta e segregacio­nista.

Uma vez registados e com direito a voto, os milhões de negros dos estados do Sul começaram a mudar a política norte-americana. “Mãos que antes escolheram o algodão, podem agora escolher um Presidente”, era um dos slogans da campanha presidenci­al de 1976, que deu a vitória ao democrata Jimmy Carter, oriundo da Geórgia, mas um

branco. Seria preciso um par de décadas até um negro chegar à Casa Branca e condecorar John Lewis. Entretanto, os negros começaram a concorrer, de forma mais massiva, a cargos públicos e John Lewis chegou ao Capitólio, onde se transformo­u “na consciênci­a do Congresso”.

Em Dezembro de 2019, quando a Câmara dos Representa­ntes votava o impeachmen­t a Trump (que não passou no Senado), Lewis voltou a destacar-se ao afirmar o seguinte aos seus pares: “Quando vemos algo que não está certo, que não é justo, não é justo ficarmos calados, temos a obrigação moral de dizer alguma coisa”. Declaraçõe­s que culminaram com um: “Temos de ficar do lado certo da história”.

Em Maio deste ano, quando assistia ao vídeo que dava conta dos oito minutos mais agonizante­s da história recente, quando um polícia branco esmaga o pescoço de um negro, impedindo-o de respirar, Lewis confessou que “foi tão doloroso que me fez chorar”. Ele que em Washington, em 1963, e lado a lado com Martin Luther King Jr., gritou a uma multidão de 200 mil pessoas: “Acorda, América, acorda! Pois não podemos parar, não vamos e não podemos ser pacientes”.

Lewis tinha 23 anos.

John Lewis foi preso e espancando mais de 40 vezes, entre 1960 e 1966. Durante uma acção dos Freedom Rides, em 1961, caiu inconscien­te na sua própria poça de sangue numa estação de autocarros de Greyhound, em Montgomery, Alabama, só porque quis esperar o autocarro na sala de espera, exclusiva para os brancos.

Voltou a ser preso mais tarde, em Washington, quando protestava em frente à Embaixada da África do Sul contra o apartheid ou contra o genocídio no Darfur, junto da Embaixada do Sudão. No Congresso, opôs-seà guerra dos falcões no Golfo Pérsico, em 1991. Em 2001, não participou na cerimónia do “dia da inauguraçã­o”(a posse) de George W. Bush, eleito depois da recontagem da Florida, porque considerou que o Presidente Bush não tinha sido verdadeira­mente eleito. Também não participou na posse de Trump, questionan­do a sua legitimida­de por causa das evidências de que a Rússia tinha interferid­o nas eleições norte-americanas de 2016. O Presidente Trump usou o Twitter para criticar Lewis. A certa altura Trump escreveu: “All talk, talk, talk — no action or results. Sad!” (Todos falam, falam, falam - sem acções ou resultados. Triste!”.

O episódio acentuou ainda mais o distanciam­ento entre Lewis e Trump, ao contrário do que tinha acontecido com Obama, que lhe concedeu, em 2011, a Presidenti­al Medal of Freedom (Medalha Presidenci­al da Liberdade), a maior distinção do país. Na ocasião Obama afirmou: “Quando os pais ensinarem aos filhos o que significa coragem, a história de John Lewis estará presente – a de um americano que sabia que a mudança não podia esperar por outra pessoa ou por outra hora, a lição de uma vida de feroz urgência, de agora”.

A 7 de Março de 1965, aos 25 anos, participou numa primeira tentativa de marcha de Selma a Montgomery, através da ponte Edmund Pettus, duas cidades do sul dos Estados Unidos, onde o Ku Klux Klan, com a cumplicida­de das autoridade­s, impunha regras próprias de segregacio­nismo e violência

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DR Em 2011 Barack Obama, enquanto Presidente, reconhecia os feitos de John Lewis ao condecorá-lo com a Medalha Presidenci­al da Liberdade
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DR A urna com os restos mortais do activista passou por vários estados

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