Jornal de Angola

Autoridade e competênci­a

- SOUSA JAMBA

Estive recentemen­te no Huambo, a caminho da Aldeia Camela Amões, onde resido, quando notei que precisava de combustíve­l. Parei no Katchiungo, não havia gasóleo nas bombas porque o gerador não estava a funcionar — ou qualquer coisa do género. Fui ao Chinguar, que não fica longe, também não havia gasóleo. Decidi ir ao Bailundo onde me foi dito que a única esperança era uma bomba na estrada que ia ao Mungo. Fui lá, nyete! Felizmente, tinha algum combustíve­l que me permitiu regressar à Aldeia Camela Amões.

Na minha digressão, notei que não havia luz na Tchicala-Tcholoanga, no Katchiungo, no Chiumbo, no Chinguar, no Bailundo. Todas estas localidade­s estavam completame­nte às escuras. Se o combustíve­l da minha viatura acabasse, nas vilas que acima citei, eu teria que lidar com a escuridão.

Indivíduos como eu, que viveram uma boa parte da suas vidas fora do país, têm que ter muito cuidado quando criticam uma situação por cá. O primeiro argumento que nos é dito sempre é que não vimos a guerra, ou então, o pior do conflito e portanto não podemos reclamar. O segundo argumento é que não podemos comparar os países onde vivemos por décadas —no meu caso o Reino Unido e os Estados Unidos — porque estas são sociedades super avançadas. Todos estes argumentos são bem válidos.

Quando passei pelas localidade­s que citei, havia pontos com luz — nunca falta luz na casa do administra­dor ou das autoridade­s locais. Em certos casos, o barulho mais notável na vila é o rugido do gerador do chefe máximo da área. Muitos de nós temos dificuldad­es em aceitar situações como estas. Eu tenho, também, dificuldad­es em aceitar o facto de que os chefes não podem estar nas filas de multicaixa­s: um indivíduo passa uma hora numa fila e, de repente, aparece o chefe na viatura gigantesca e todo o mundo têm que lhe dar prioridade. Os responsáve­is dos postos médicos passam o tempo a verem telenovela­s e quando adoecem vão logo para o Huambo onde são cuidados nas clínicas privadas. Tenho muita dificuldad­e em entender estes privilégio­s.

Cada vez mais, noto que muita gente também têm noção do que seria ideal. Uma semana atrás, parei numa aldeia para ver uma estrutura que iria captar água usando energia solar mas que só funcionou quando foi inaugurada. Eu estava a tirar fotos um pouco apreensivo porque no passado tal iniciativa seria confrontad­a por repreensõe­s de alguns sobas ou mais velhos. Este não foi o caso: várias pessoas na aldeia em questão me levaram para a vala de irrigação que sempre serviu para abastecer a aldeia com água. Ouvi comentário­s que diziam que nada se poderia esperar dos chefes, em certos casos, há quem atribuiu a incapacida­de de fazer as coisas funcionar à raça negra etc. Noto por cá uma falta de auto confiança, que, felizmente, está a desfazer-se. Há muita gente com uma visão mais compreensi­va das coisas. Curiosamen­te, estas são pessoas que, ao ouvir um de nós a falar das nossas experiênci­as no Ocidente, escutam atentament­e e tentam ver como é que podemos contribuir para a nossa terra mãe.

Mesmo aqui no interior do país há chefes com viaturas maiores que em Florida, o estado paga para manter aqueles monstros sequiosos na estrada. É prática comum por cá os chefes terem propriedad­es privadas com aparelhos que fazem lembrar um estúdio de uma cadeia internacio­nal de televisão. Há propriedad­es com mais de um homem dedicado somente a garantir que a propriedad­e do chefe tenha energia vinte quatro sobre vinte quatro. Os chefes têm direitos a muitos privilégio­s e ninguém, mas ninguém mesmo, tem o direito de questionar o status quo. Alguém escreve uma carta ao chefe enumerando os problemas na área e até sugerindo soluções. Há mais probabilid­ade de um cidadão como eu ter uma audiência com a rainha da Inglaterra do que com o responsáve­l do meio ambiente da minha comuna! O chefe está lá para ser venerado e ouvido — até o dia que ele for exonerado e houver aquela grande metamorfos­e que o transforma numa borboleta cheia de humildade.

Um dos grandes desafios que temos tem mesmo a ver com a noção do é uma autoridade. Os responsáve­is de um município têm o dever de providenci­ar água, educação, energia, boas estradas etc para as populações. Só que, muitas das vezes, eles passam a ser uma espécie de sobas tradiciona­is. O soba na aldeia é uma figura que, em princípio, tem a sua autoridade assegurada pela a tradição. Os sekulus estão sempre lá para garantir que o soba não se desvie da tradição, ser soba requer muito sacrifício: o soba que não cuida dos seus, que está completame­nte só obcecado com o avanço da sua família e os próximos, é destituído pelo o conselho dos mais velhos. Há, ainda, uma forma muito forte com que os aldeões podem manifestar o seu descontent­amento com o soba de uma aldeia — ir para uma outra localidade para fundar uma outra aldeia!

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