Jornal de Angola

Juan Carlos, a saída pela porta pequena do rei que enterrou o franquismo

Com as investigaç­ões à perna, à volta de cem milhões de dólares, Juan Carlos, o rei emérito, deixa Espanha. Pode ter de responder em tribunal, quer no seu país, quer na Suíça. O Jornal ABC diz que viajou para a República Dominicana, através do Porto. A re

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Em 2012, no ano em que os espanhóis sofriam na pele a crise financeira e mais saíram à rua para protestar, souberam que o rei tinha partido a anca num safari no Botswana, na companhia da amante, numa viagem de luxo paga por empresário saudita. Foi o início do fim de um reinado que teve o seu ponto alto os primeiros anos, entre 1975 e 1981, quando pegou numa ditadura e transformo­u-a numa democracia, mantendo as várias nações de Espanha.

Em 2014, a conjugação do estado de saúde do rei e a erosão causada pelo escândalo levou-o a abdicar a favor do seu filho. Porém, o pior estava para vir. A antiga amante, Corinna zu Sayn-Wittgenste­in, hoje Corinna Larsen, afirmou que Juan Carlos recebeu uma comissão quando a construção do comboio de alta velocidade saudita, entre Meca e Medina, foi adjudicada a um consórcio espanhol. Larsen, que em 2012 viu entrar na sua conta 65 milhões de euros (por “gratidão e amor”, justificou mais tarde Juan Carlos), queixase também de tentativas de roubo de documentos, de intimidaçã­o e espionagem por parte dos serviços secretos espanhóis (CNI).

As gravações da conversa de Larsen em Londres, em 2015, com um ex-comissário e o ex-presidente da Telefónica, nas quais a examante explica os esquemas em que actuou como testade-ferro e disse que o rei “não distingue o legal do ilegal”, foram tornadas públicas em 2018, pelas publicaçõe­s OKDiario e El Español.

Em consequênc­ia, o juiz do Tribunal Nacional Diego de Egea quis ouvir testemunha­s do processo e, meses depois, o Ministério Público espanhol abriu um processo, no âmbito da luta contra a corrupção. Em Março deste ano, foram enviadas cartas rogatórias à Suíça, para aceder aos dados dos movimentos de dinheiros.

Após novas revelações do diário suíço Tribune de Genève e do britânico Daily Telegraph, Felipe VI cancelou ao pai a dotação anual do Palácio Real, avaliada em 194 mil euros por ano. Explicou então que estava também a renunciar à herança do seu pai “a fim de preservar a natureza exemplar da coroa”.

A decisão de Felipe VI foi tomada após as informaçõe­s divulgadas sobre a investigaç­ão à origem de 100 milhões de dólares que tinham dado entrada num banco suíço para a Fundação Lucum, com base no Panamá, que tem como primeiro beneficiár­io Juan Carlos, para determinar se eram comissões pagas pela Arábia Saudita ao rei.

Em Julho, novas fugas de informação surgiram, com testemunha­s a declararem aos investigad­ores que os milhões tinham sido transferid­os para Juan Carlos, como sinal de “gratidão” por parte do falecido rei Abdullah da Arábia Saudita. Também foi revelado que Juan Carlos I fez levantamen­tos periódicos da conta em nome da fundação Lucum, em montantes que excederam 100 mil euros por mês, entre 2008 e 2012.

O Primeiro-Ministro

“Como Afonso XIII”,

o rei que abandonou Espanha após as eleições de 1931, que foram vistas como um plebiscito ao regime, foi o que se limitou a dizer Quim Torra, o presidente do governo da Catalunha.

Outros independen­tistas catalães foram mais comunicati­vos. Para Carolina Telechea, porta-voz adjunta da Esquerda Republican­a da Catalunha no Parlamento, Juan Carlos está a fugir do sistema judicial espanhol “porque é corrupto”, em vez de ficar “para o enfrentar com dignidade” e para responder em tribunal às alegadas irregulari­dades pelas quais está a ser investigad­o. “O melhor serviço que se pode prestar ao povo espanhol é não fugir da Justiça e dar a cara com dignidade”, disse.

Já a secretária-geral da ERC, Marta Rovira, fez questão de espanhol, Pedro Sánchez, descreveu as informaçõe­s como “inquietant­es e perturbado­ras”, embora, ao mesmo tempo, tenha agradecido a Felipe VI por se distanciar delas.

Emérito mas não imune

Cercado pela Justiça, e apesar de ainda manter as honrarias de rei emérito, Juan Carlos pode vir a ser constituíd­o arguido. Para não manchar mais o regime, anunciou a saída de Espanha, apesar de se dizer disponível para colaborar com a Justiça.

Se Juan Carlos de Borbón tem imunidade relativame­nte a todos os actos realizados enquanto Chefe de Estado, até à abdicação, a partir daí é imputável. Ou seja, em teoria, poderá vir a ser acusado de branqueame­nto de capitais e fraude fiscal, num julgamento que só poderia ocorrer no Supremo Tribunal, como explica o Público espanhol.

Mas também as autoridade­s judiciária­s suíças estão a investigar e poderão querer que Juan Carlos seja ouvido sobre os alegados crimes de diferencia­r a fuga do Borbón daquela que Carles Puigdemont e de outros independen­tistas: “Muito diferente é aquele que vai para o exílio para defender a democracia daquele que corrupção em transacçõe­s comerciais internacio­nais.

Percurso

Juan Carlos de Borbón nasceu em 5 de Janeiro de 1938, em Roma, tendo-se mudado com a família para a Suíça, em 1942, e depois para Portugal, no Estoril, em 1946. Só conheceu Espanha com dez anos.

Por proposta do ditador Francisco Franco, foi designado pelas Cortes como Chefe de Estado, em 1969. Mas assim que Franco morreu e assumiu as funções de rei, anunciou a transição para a democracia, o que conseguiu de forma relativame­nte pacífica e com sucesso.

Do seu reinado fica também a sua vertente europeísta e ao impulso dado às relações ibero-americanas. Nos últimos anos, tinha abdicado da vida pública, apenas comparecen­do a touradas, corridas de automóveis ou a fazer vela com os amigos.

Com a sua mobilidade cada vez mais afectada, Juan Carlos foi operado ao coração em Agosto do ano passado.

foge porque é corrupto.”

O líder dos republican­os catalães em Madrid, Gabriel Rufián, disse que o emérito “abandona” Espanha em vez de dizer que “foge” do país. “Pode uma pessoa perseguida pelo Ministério Público do Supremo Tribunal dizer directamen­te que está de partida, sem quaisquer consequênc­ias ou controlo? No mínimo, pedimos que o seu passaporte seja retirado e ele não pode partir, pois, de outra forma, irá certamente acabar num país sem uma ordem de extradição”, alvitrou, também desconhece­ndo que Juan Carlos já estaria fora do país.

Do País Basco, Arnaldo Otegi, líder do EH Bildu, da esquerda abertzale, preferiu pedir o fim da monarquia: “Juan Carlos vai-se embora mas o regime de 78 que representa fica. Agora é a vez da República”, disse.

As notícias

do seu envolvimen­to num caso de corrupção e de transferên­cia de dinheiro para paraísos fiscais começaram a fazer danos na coroa espanhola, o que levou a que se propusesse no Parlamento uma comissão de inquérito, mas PSOE, PP e Vox impediram a iniciativa.

Após as notícias da saída de Juan Carlos pela porta pequena, os partidos à esquerda não pouparam o antigo monarca, enquanto o PSOE optou por se limitar a expressar o “profundo respeito” pela decisão, tendo preferido elogiar a figura de Felipe VI, “exemplar” e “transparen­te”.

Fontes socialista­s do Governo disseram aos jornais que a decisão “fortalece a instituiçã­o e permite o trabalho constituci­onal de Felipe VI”. A Unidas Podemos, que está na coligação de Governo, declarou que “não há razão para continuar a sustentar uma monarquia sem os valores éticos mínimos, num país que tem vindo a suportar sucessivas crises económicas e sociais”.

O partido de Pablo Iglesias também afirma que não se pode continuar a “impedir o debate social sobre o modelo do Estado em Espanha” e que “a ideia de uma república solidária e multinacio­nal está a ganhar terreno”. “É nossa convicção democrátic­a que deve ser o povo a decidir”.

Pablo Iglesias disse que se está perante “uma atitude indigna de um antigo Chefe de Estado. “Deixa a monarquia numa posição muito comprometi­da. Por respeito pelos cidadãos e pela democracia espanhola, Juan Carlos I deveria ser responsabi­lizado pelos seus actos em Espanha e perante o seu povo”, disse.

O segundo vice-PrimeiroMi­nistro de Espanha considerou que “um Governo democrátic­o não pode olhar para o lado, muito menos justificar ou acolher comportame­ntos que minam a dignidade de uma instituiçã­o chave como o Chefe de Estado e que é uma fraude à Justiça”.

O porta-voz da Podemos no Congresso, Pablo Echenique, ainda sem saber que Juan Carlos já tinha abandonado o país, sugeriu que fosse impedido de sair até que a investigaç­ão do seu caso estivesse concluída.

“Com casos pendentes em Espanha e tanto dinheiro para viajar e proteger-se, será que a Justiça lhe vai permitir sair? Isso não poderia tornar as investigaç­ões mais difíceis? Esperamos que esta não seja exactament­e a razão da decisão e, se assim for, ele será impedido de fugir”, disse o deputado no Twitter.

Echenique observou que “as pessoas não estavam a pedir a Juan Carlos de Borbón para deixar Espanha. O povo pede que a verdade sobre as suas actividade­s alegadamen­te corruptas seja conhecida, que pague pelos crimes que cometeu e que devolva os impostos que evitou”, disse Echenique, que se referiu às actividade­s do rei como “negócios obscuros”.

Íñigo Errejón, que saiu da Unidas Podemos e agora é membro de Más Madrid, a atitude do rei emérito, que “foge de Espanha sem ser responsabi­lizado”, é “um escândalo” que só pode ser minorado se “devolver o dinheiro”.

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