A Covid-19 e a tensão arterial
Já com uma certa idade - aparentava ter entre 58 e 64 anos -, Avelino Luquemba chegou à clínica amparado nos braços de dois jovens, aflitos em providenciarem que o mais velho fosse prontamente assistido. Ele parecia não estar em si, denotava alguma fraqueza no andar, e nem sequer comunicativo estava. Percebia-se que o homem estava tenso e não conseguia articular as palavras. Tanto que as formalidades para ser atendido foi um dos jovens que tratou de as preencher. Colocar o nome na ficha de atendimento, a idade, a morada, a seguradora, etc., enquanto o outro acompanhava os primeiros procedimentos ao paciente encaminhado ao banco de urgência.
A médica e o enfermeiro, atenciosos, tiveram pronta intervenção. Mandaram-no deitar-se na cama e manter-se o mais relaxado possível. O medidor digital da tensão arterial foi logo posto a funcionar. Com o dispositivo ligado ao dedo indicador do paciente, o equipamento emitia bips acelerados, enquanto os números iam subindo. No monitor rectangular podia ver-se a contagem na parte de cima: 120 - 125 - 130 - 135 - 140 - 145 - 150 - 155 - 160 - 165 - 170 - 175 - 180 - 185 - 190 - 195, até estabilizar-se nos 200. Na parte inferior, indicava 99. A médica sentenciou: a sua tensão está alta, senhor Avelino. Vamos ter que baixá-la. Orientou ao enfermeiro que lhe desse um comprimido de enalapril, ao mesmo tempo que tentava acalmar o paciente, puxando conversa para procurar saber o que se tinha passado.
Fique calmo senhor Avelino. Então o que aconteceu? Aborreceu-se no serviço, teve algum problema familiar? - indagou. Como o paciente não respondia, tentou nova investida, começando por procurar tranquilizá-lo: Isso vai passar, senhor Avelino, fique calmo, o que se passou afinal? Teve alguma arrelia? - questionou. Como não obtivesse resposta, com aquela voz carinhosa e meio resignada, disse - Bom! Não quer falar agora, não tem problemas. Depois passo para conversarmos. E foi atender outros pacientes, não sem antes orientar o enfermeiro sobre os procedimentos a seguir.
O enfermeiro ficou atento a todos os movimentos de Avelino Luquemba. Um olho no computador que tinha à sua frente, onde lançava os dados do movimento registado até àquela hora da manhã (11h00) e outro no paciente. O medidor de tensão arterial sempre em ritmo acelerado, até que, passados uns sete minutos, os números começaram a baixar.
Quando o monitor marcava 150/90, Avelino Luquemba ergueu o dorso, sentou-se na cama e já queria pôr-se de pé. O enfermeiro prontamente interveio e, de forma elegante, convenceu o paciente a manter-se deitado, a relaxar. Ainda lhe perguntou se sabia onde estava, e Avelino Luquemba a responder, mal articulando as palavras, que estava no Benfica… Mas o enfermeiro corrigiu - “Não está no Benfica. Está na clínica, em Talatona. Já vai ficar melhorzinho”. E acrescentou: “Fica deitado, mais velho, tem de descansar mais um bocado. O seu filho está lá fora, depois vem buscar-lhe”. As palavras parecem ter tranquilizado o doente, que mais uma vez tentara pôr-se de pé.
Quando se apercebeu que o homem já estava mais calmo, o enfermeiro aproximou-se do leito onde Avelino Luquemba repousava e meteu conversa - Então kota, está tudo bem? Houve algum problema? E Luquemba começou a contar, com tropeços na linguagem, o que se tinha passado.
“Estás a ver? Eu queria mandar uma mercadoria para a província. Combinei com o homem pagar 10 mil kwanzas. Mas agora ele está a dizer que são 15 mil. Eu não tenho esse dinheiro. Eu vivo disso. Antes, os preços eram outros. Agora estou aqui preso em Luanda, não posso viajar, a minha família está lá, o dinheiro está a acabar, como é que eu faço?” - atirou, com os olhos fixos no enfermeiro, à espera que este lhe desse uma solução mágica. O técnico de saúde aconselhou-o a ter calma e a pedir ajuda à família, porque, neste tempo, “as pessoas devem estar mais unidas”.
Dona Berta Veríssimo também está “acantonada” em Luanda por conta da Covid-19. Há dias em que a tensão sobe, há outros em que está baixa. Veio em consulta médica e a pandemia encurralou-a em Luanda. As “janelas de oportunidade” que foram abertas para regressar não pôde aproveitar, porque não tinha terminado os exames recomendados pelo médico. Por estes dias, as dores de cabeça aumentaram com as notícias de que, lá no curral, os trabalhadores que deixou andam a vender algumas cabeças de cabritos e carneiros. Ela que juntou com sacrifício dinheiro para ter uma pequena criação não sabe como se virar. Nem posição para dormir, à noite, às vezes consegue. É tanta raiva que sente, que já chegou a sonhar que meteu no cafrique um dos trabalhadores, espetou-lhe umas cabeçadas e baçulas, enquanto o outro fugia, porque nunca tinha visto uma mulher a lutar assim. Mas sabe que não deve fazer justiça pelas próprias mãos. Ela que, como diz, é “três tempos”, quando os pensamentos lhe põem em “modo pausa” fica a interrogar-se como é que surgiu essa tal de Covid19. Que mais parece nome de cobra. E que se fosse cobra arrumava o assunto com um bom pau daqueles e prontos!
Avelino Luquemba e Berta Veríssimo sentemse como se estivessem dentro de uma camisade-forças. Não sabem se se atiram contra a cerca sanitária, contra a Covid-19 ou contra as autoridades. Contra a cerca sanitária têm receio que lhes aconteça o que já ouviram de outras estórias. Companheiros de viagens que se atreveram a furar o controlo foram denunciados e entregues às autoridades sanitárias para cumprirem a quarentena institucional, com direito a multa e tudo. O mais caricato é que a denúncia partiu de pessoas que supunham ser de confiança. Familiares directos e amigos. Todo o mundo tem medo da Covid-19 e quem sai de Luanda, ainda por cima violando a cerca sanitária, é caso suspeito. Pela idade que têm, lembram-se, nos tempos passados, como eram tratados os doentes de lepra e de tuberculose. Todo o mundo fugia deles. Só mesmo os médicos tinham coragem.
Contra a Covid-19 é a resignação total às medidas de biossegurança que são recomendadas. Contra as autoridades, dizem - “Coitadas! Também estão atoladas.” Mas esperam que seja encontrada, a curto prazo, uma solução, porque a situação está a matar pequenas iniciativas económicas de muitas famílias e a travar o desenvolvimento do comércio, que já estava a bom ritmo antes dessa pandemia vir estragar o negócio.
Os nomes são fictícios, mas as situações aqui relatadas são verídicas. A pandemia da Covid-19 veio potenciar os factores de agravamento de várias enfermidades. A tensão arterial é uma delas