“Haverá um maior número de infectados e mais mortes”
Javier Aramburu assumiu o cargo de representante interino da Organização Mundial da Saúde (OMS) em Angola em Janeiro de 2020. Tem acompanhado, entre outros assuntos, todo o processo de combate à Covid19. Em entrevista ao Jornal de Angola, elogia as medidas da Comissão Multissectorial, mas defende uma melhor preparação nos hospitais de campanha e um controlo rigoroso nas fronteiras para evitar que as pessoas violem as cercas sanitárias. Alerta que não se deve permitir que doentes com sintomas leves transitem para casos mais graves
Qual é a avaliação que faz dos resultados até agora alcançados por Angola no combate à Covid-19?
Primeiro, devemos avaliar as taxas de ataque da doença em função da média da população. Angola teve o mérito de adiar a aceleração da doença, o que permitiu uma preparação rápida. Nesta altura, em África não há nenhum país que não tenha casos da Covid-19. Angola já passou a fasquia dos mil casos confirmados e isso marca uma etapa que exige algum cuidado e controlo para diminuir o número de activos. Essa missão não é apenas do Ministério da Saúde, mas também da população.
Estamos no bom caminho?
O país está numa fase crucial. É preciso reduzir, ao máximo, o corte da cadeia de transmissão. Isso envolve mais intervenções na agenda do combate à pandemia.
Que intervenções são essas de concreto?
Muitas já estão a ser implementadas pela Comissão Multissectorial de Prevenção e Combate à Covid-19, que passam pelo reforço das medidas de vigilância epidemiológica face ao novo coronavírus. Podemos incluir medidas gerais e específicas, tendo em conta que a pandemia tem duas componentes: a primeira é parte da saúde e a outra económica, pelo que devem estar em perfeita harmonia. Por outro lado, de nada serve que todas as pessoas fiquem em casa e a economia seja destruída, mas também a economia deve funcionar com algumas restrições, com olhos na prevenção das comunidades. Outro momento importante foi adiar o reinício das aulas, uma medida muito assertiva. Em todos os países o regresso às aulas presenciais fez aumentar o número de pessoas infectadas.
Diante deste cenário, defende medidas mais rígidas para conter a propagação do vírus?
Se o cenário exigir, claramente que sim. Repare que, em alguns aspectos, os jovens normalmente percebem os apelos das autoridades sanitárias de forma diferente e julgam que não os vai acontecer nada nem vão morrer com a doença e estão sempre expostos ao perigo. É uma forma errada de pensar. Por isso, é preciso redobrar os apelos às comunidades para uma melhor observância das medidas de prevenção, como o uso da máscara. Não basta usar máscara, mas deve ser bem colocada, tapando a boca, o nariz e o queixo. Há máscaras de pano que não protegem bem e a OMS recomenda três camadas, sendo uma delas de material sintético e outra de algodão. Estes detalhes técnicos são importantes porque, às vezes, as pessoas reutilizam as máscaras de panos e as cirúrgicas com frequência: é extremamente perigoso. As medidas de distanciamento físico são fundamentais, sobretudo, nos transportes públicos, mercados, centros comerciais e bancos. Por outro lado, penso que deve haver ajustes nos dias e horários nos mercados e centros comerciais, porque quanto mais se alargam os horários as pessoas vão se aglomerar menos. Os horários curtos fazem com que as pessoas fiquem mais aglomeradas e há um controlo difícil das medidas.
O confinamento tem resultado?
Sim. Mas é preciso alguma cautela, porque as pessoas não podem ficar todas em casa para não degradar ainda mais a economia. Deve haver um equilíbrio entre os cuidados necessários para evitar a propagação da doença e as actividades económicas que devem continuar a produzir. A maioria da população angolana está no mercado informal. Esta actividade não pode fechar, com o risco de dificultar a situação das famílias.
Daí a necessidade de haver equilíbrio nas medidas tomadas pelas autoridades?
Concordo plenamente. Aliás, a vida não é só saúde, mas também saúde económica e social. Uma pessoa que fica fechada 15 ou 20 dias, a sua saúde mental se altera e tem muitas probabilidades de contrair qualquer infecção. Muitas pessoas têm medo de recorrer aos centros de saúde em função do contágio, por isso, nesta fase, é preciso apostar também na assistência médica por telefone ou online, de modo a evitar as deslocações desnecessárias às unidades de saúde.
O Ministério da Saúde levou muito tempo para dar início aos testes rápidos?
O importante é que o processo já começou e demonstra novos cenários da evolução do vírus. Os testes rápidos são úteis e complementares antes do diagnóstico molecular principal por RT-PCR. Mas o problema dos testes é que são uma área crítica não só de Angola, mas também de toda África e, praticamente, de todo mundo. Falase que, até o fim do ano, uma vacina estará disponível, de modo a atender as pessoas de risco, como os profissionais de saúde e pacientes com sintomas de risco.
Apesar de Angola ter ganho algum tempo diante da progressão da Covid-19, o sistema de saúde enfrenta ainda muitos desafios. Sente que melhorou alguma coisa?
Melhorou em muitos aspectos, sobretudo, no aumento da capacidade de testagem com a montagem de mais laboratórios e outros que poderão surgir em breve. Mas nem todos os testes estão disponíveis para os diferentes tipos de máquinas. É um problema não só de produção destes aparelhos de diagnóstico, mas também de distribuição. Também é urgente que se aumente o número de profissionais de saúde treinados para manuseamento de casos da Covid19 nos hospitais. Temos conhecimento que haverá um incremento de mais seis hospitais de campanha que será uma mais-valia. Estas unidades devem estar bem equipadas com oxigénio para os casos mais graves. Além de pessoal treinado, não deve faltar medicamentos. Evitar que os casos moderados transitem para casos mais graves. Existem outros aspectos a nível da logística e dos laboratórios que ainda carecem de alguma atenção, mas devo transmitir uma frustração por parte da OMS que não tem sido capaz de dar todo apoio que o Governo está a precisar, mas é um problema geral, sobretudo, em países com grandes números de casos.
E qual seria a solução para Angola na questão dos testes?
Uma das soluções seria a produção de testes localmente para deixar de depender de fornecedores, à semelhança do que está a acontecer em alguns países que estão a solucionar este problema produzindo os seus testes internamente. É evidente que os países que têm maior quantidade de casos positivos da Covid19 fazem mais testes. É um tema chave e estamos a dar todo apoio necessário. Há um aspecto que deve ser tido em conta: mais de 80 por cento dos doentes com a Covid-19 são assintomáticos, significa que as testagens são importantes. Os últimos dados indicam que dos 100 testes que se fazem oito a dez por cento são positivos. Por isso, se os números de testes fossem maiores apanharíamos muitos infectados.
A Covid-19 está a matar muito em Angola e também há poucos recuperados em comparação com outros países da África. Onde é que estamos a falhar?
A taxa de mortalidade está a aumentar em geral não só por causa da Covid-19, mas também, como em outros países da região e do mundo, por outras causas, na medida em que há outras causas importantes de mortes ligadas às grandes endemias, nomeadamente a malaria, tuberculose, VIH e outras associadas às dificuldades no acesso aos cuidados de saúde, que fazem com que os números de mortes aumentem. Com a transmissão comunitária haverá um crescimento de casos positivos e um número elevado de mortes. É importante considerar que, devido à dificuldade de processar um grande número de testes por dia, haverá também um menor número de casos identificados e assim fazer com que a letalidade (total de mortes sobre total de casos) seja em realidade menor.