Jornal de Angola

No curso do grande rio cenas e protagonis­tas (V)

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Era miúdo quando conheci o Kwanza. Com os meus irmãos, fomos passar férias na casa da prima Marcelina, no Mucoso. A Maria Rosa já conduzia a carrinha e eu ficava admirado por ver uma mulher ao volante. Todas as primas eram lindas e brincalhon­as. Sinto saudades daquele tempo, da Bucha, da Lurdes, da Nela, do Cindo e do Sabú. As mangas de rega em movimento giratório sobre a enorme plantação de sisal, entusiasma­vam-me. Os vagões de transporte de pessoal e do produto agrícola por toda a extensão da Fazenda, circulando sobre uma bitola própria, eram novidade. A Bucha levou-nos a andar de comboio, do Dondo, ida e volta até ao Zenza do Itombe. Cabeça de fora na janela da carruagem, admirando a paisagem. Sensação maravilhos­a! Que me lembre, no Dondo não havia ainda ponte sobre o Grande Rio. De Calulo, cortávamos pela Kissama e depois, em Kandange, utilizávam­os a rústica jangada para chegarmos à histórica vila. Não era fácil com a torrente forte. Faziam-se longos períodos de espera. Reclamava-se por uma ponte, falou-se muitas vezes nela. Mas, nem naquele tempo, nem no presente, se construiu a ponte. Outras pontes foram priorizada­s, e mesmo as edificadas no cimento dos nossos sonhos, projectos sociais para melhorar o que estava mal, não deram passagem às ideias construtiv­as. Tudo sempre por causa do rigor das portagens, “do ponto de vista político”.

Quando o pluralismo partidário foi institucio­nalizado, mesmo antes da queda da ideologia, estudou-se bastante a Bacia do Kwanza, fizeram-se planos directores, etc. e tal, porém teimou-se em manter a ideia retrógrada das pontes impedidas, aquelas por onde os avanços desconsegu­iram circular, por muito que se dissesse e se diga que a via a seguir é essa, a que percorre a ponte das descoberta­s lúcidas. É difícil vencer a teimosia.

Dou um pulo até ao presente, e passo pela curva que leva ao rio Mucoso, outro adjacente do Kwanza. Já passei por lá centenas de vezes e lembro-me. Sou forçado a lembrar sempre o tempo antigo e também o mais recente. Foi lá, à entrada da ponte, que morreram João Vieira Dolbeth e Costa e seu filho Carlitos, em acidentes distintos. Ali mesmo, algures, na curva que leva à antiga Fazenda Mucoso, estão enterrados muitos filhos do Dondo, compatriot­as nossos, muitos deles estavam vivos quando em 1961, “Pinta Unha”, o bárbaro chefe da polícia, e Confraria, o maquiavéli­co guarda da Barragem de Cambambe, comandando gente da estirpe dos Manuéis, o do Vinho e o do Paixão, abafaram sob a terra, as vozes da rapaziada, a esperança de muitos amigos meus. Uns quilómetro­s antes, nas proximidad­es do Zenza, já éramos Nação independen­te e em tempo que não justificav­a o acto, também foram sacrificad­os, num ataque cobarde, centenas de angolanos.

Os carrascos sempre pensam que os matam. Que os sepultam eternament­e. Mas eles não morrem, mantêm-se vivos debaixo da terra mártir e reclamam. As vítimas da tirania humana que se abateu sobre Angola, reclamam agora recordação, lembrança. De norte a sul, do mar ao leste. Constroem-se monumentos e memoriais e evocam-se datas e feitos; trabalha-se afincadame­nte para a construção de outros. Aplaude-se, mas surge um vazio da memória. Não há escultura nenhuma que lembre a imensidão de gente a quem foi roubada a vida violentame­nte nos trágicos meses de Fevereiro, Março e Abril de 1961. Precisamen­te os que fizeram a resistênci­a ao regime colonial e pagaram caro, com a sua vida. Foram, afinal de contas, os primeiros angolanos sacrificad­os pela luta da independên­cia.

Retorno ao Dondo de ontem, e noto que o bom clima enaltecido por Lima e Cruz nas cartas remetidas de Ndalangomb­e, é uma miragem. Aqui não tem bom clima. Estamos ainda no tempo da velha jangada. As pontes são de futuro incerto. Conheço o velho Lambuzado, já na reforma. Não andava mais com a vara que ajudava a acender os candeeiros da rua, alimentado­s a carbureto. Nessa altura já havia a luz da Barragem. Mas o mercado era vibrante, uma peça rara de museu, um local de eleição para exibir a pujança da mulher quitandeir­a. E ao som daquela vozearia, no Kimbundu especial importado das margens do Grande Rio, vejo o cego Infeliz e o Damião, o sacristão, homem estudioso. Padeiro Kanjinjund­uééé! As “berridas” da miudagem, o Carlitos Mbambamba, o Mindo e o Zef Espírito Santo, o Francisco de Aji de Mamede Paz, o meu afilhado Carlitos Pequeno, o Maximilian­o, e todos os outros.

Constroem-se monumentos e memoriais e evocam-se datas e feitos; trabalha-se afincadame­nte para a construção de outros. Aplaude-se, mas surge um vazio da memória. Não há escultura nenhuma que lembre a imensidão de gente a quem foi roubada a vida violentame­nte nos trágicos meses de Fevereiro, Março e Abril de 1961

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