Jornal de Angola

A história do escravo do Texas que virou milionário

- Patricia Sulbarán /* DR * Jornalista da BBC News

Ellis enriqueceu durante a chamada “Era Dourada” ou “Gilded Age” dos Estados Unidos, quando o país passou por grandes mudanças, com a chegada da industrial­ização, criando milionário­s. Ainda antes do nascimento de Ellis, a ideia do México como terra de liberdade vivia no imaginário de muitos afroameric­anos no Sul dos EUA. E foi pelo vizinho Sul que ele optou

Ele era conhecido como Guillermo Enrique Eliseo ou Guillermo Ellis, um rico banqueiro da Cidade do México, que por sua vez tinha um escritório em Wall Street em Nova Iorque e uma residência na área nobre a oeste do Central Park.

Seria loucura pensar que esse homem, sempre vestido com jóias e roupas caras, nascera escravizad­o numa plantação de algodão no Sul do Texas. William Henry Ellis era o seu nome verdadeiro.

Ele foi investigad­o pelo FBI, a polícia federal americana, conheceu o então Presidente Theodore Roosevelt, manteve relações estreitas com Porfirio Díaz, então mandatário mexicano, liderou uma missão diplomátic­a na Etiópia e, entre outras façanhas, orquestrou “um dos mais audaciosos planos de imigração de afroameric­anos na história dos Estados Unidos.”

Karl Jacoby, historiado­r da Universida­de Columbia, em Nova York, deparou com a figura enigmática de Ellis por acidente. Tamanho foi o seu fascínio, que dedicou boa parte da sua carreira académica a mergulhar na trajectóri­a desse personagem, que viveu entre 1864 e 1923.

O esforço materializ­ouse num livro, lançado em 2016, intitulado The Strange Career of William Ellis: The Texas Slave Who Became a Mexican Millionair­e ('A estranha carreira de William Ellis: o escravo do Texas que se tornou um milionário mexicano', em tradução livre).

No ano passado, o documentar­ista americano Phillip Rodríguez adquiriu os direitos para reproduzir o livro na TV e no cinema. O projecto está em andamento. Uma das coisas que mais chamaram a atenção de Jacoby foi que Ellis “fez todas as coisas que um afro-americano da sua época não deveria fazer”.

“Era o momento em que (as leis de segregação racial) Jim Crow estava a se institucio­nalizar e, apesar disso, Ellis encontrou brechas no sistema e conseguiu fazer coisas notáveis”, diz Jacoby à BBC News. Assim, apesar de todo o racismo da época, conseguiu conquistar o seu espaço no topo da sociedade americana. Mas como?

De tradutor a empreended­or

O local onde Ellis cresceu ajudou-o a aprender espanhol, uma ferramenta poderosa de que tirou proveito para o resto da sua vida. Ellis nasceu em Victoria, no Sul do Estado americano do Texas, um ano antes da abolição da escravidão, em 1865.

Ali, cresceu rodeado de “mexicanos, texanos, angloameri­canos e afro-americanos, que moravam perto uns dos outros”, descreve Jacoby. Na plantação de Joseph Weisiger, um patriarca branco de Kentucky, a família Ellis entrou em contacto com os mexicanos que trabalhava­m nas movimentad­as estações de colheita de algodão.

Assim, o jovem William aprendeu a falar espanhol fluentemen­te e depois tornou-se assistente e tradutor do irlandês William McNamara,

um poderoso comerciant­e de algodão e couro.

“McNamara não apenas comprava matérias-primas no Texas, mas ao longo de toda a fronteira com o México. O jovem Ellis acompanhav­a-o, sendo uma espécie de porta-voz”, descreve Jacoby. Aos 20 anos, Ellis despediu-se da sua terra natal, Victoria, e decidiu mudar-se para San Antonio, uma cidade maior.

Foi então que a sua vida começou a mudar: ao abrir o seu negócio de comércio de couro e algodão, Ellis passou a dizer aos clientes que o seu nome era Guillermo Enrique Eliseo e que tinha origem mexicana.

Pesou a seu favor o facto de que, naquela época, no fim do século XIX, “ninguém tinha passaporte, carteira de motorista ou certidão de nascimento”, diz o historiado­r. Ao mesmo tempo, o desenvolvi­mento de ferrovias, na década de 1880, facilitou viagens mais rápidas e longas.

Saudades do México

Desde antes do nascimento de Ellis, a ideia do México como terra de liberdade vivia no imaginário de muitos afroameric­anos no Sul dos EUA.

“Estima-se que quatro mil escravizad­os fugiram dos Estados Unidos para o México, antes da Guerra Civil (entre 1861 e 1865)”, afirma o livro.

Foi isso que Felix Haywood, um ex-escravo do Texas, descreveu num testemunho citado no livro: “Não havia razão para correr para o Norte. Tudo o que tínhamos que fazer era caminhar, mas caminhar para o Sul, e estaríamos livres assim que atravessás­semos o rio Bravo”.

A escravidão de africanos existia no México desde 1519, diz Jacoby. Mas após a independên­cia, em 1821, o país “tomou medidas para proibir o comércio de escravos e emancipar todas as crianças escravizad­as com menos de 14 anos”.

“É difícil para os americanos entenderem o facto de que o verdadeiro bastião de liberdade durante esses tempos não eram os Estados Unidos, mas o México”, explica o historiado­r.

'Passing'

Com a abolição da escravidão nos Estados Unidos, os maus-tratos à população negra não cessaram, o que levou muitos no Sul a ver o benefício - e correr o risco - de se apresentar como mexicanos ou cidadãos de outros países.

Esse tipo de comportame­nto - conhecido pelo termo passing em inglês era geralmente usado para descrever alguém com “ascendênci­a afro-americana, mas que se apresentav­a como branco”, explica Jacoby.

Era comum aqueles que começavam uma nova vida como “brancos” distanciar­em-se das suas famílias para sempre. A prática às vezes era mal vista, uma vez que “davam as costas à comunidade à qual pertenciam”.

Por fim, observa Jacoby, o que o passing indicava era que “todo o sistema racial dependia de classifica­ções de senso comum e da ideia de que se 'conhecia' a raça de alguém apenas olhando para a pessoa”.

“Mas isso não era possível, especialme­nte consideran­do que, durante o período de escravidão, houve uma enorme exploração sexual de mulheres negras pelos seus escravizad­ores”, diz.

Convenient­emente, Ellis fez-se passar por mexicano em San Antonio, uma cidade onde 20 por cento da população era dessa origem. Mais tarde, em Nova Iorque, por exemplo, fingiu ser cubano. E em outras ocasiões, até havaiano.

A única vez em que ele admitiu ter recorrido à prática foi em 1891, numa entrevista a um jornal de Chicago, segundo documenta o livro. Ellis explicou que viajar de trem foi o que o motivou a fazê-lo. “Sou obrigado a passar-me por mexicano, a fim de obter os confortos básicos de um viajante branco”, afirmou.

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