Tristeza não tem fim, felicidade sim
Fernando de Oliveira, professor jubilado da faculdade de direito da Universidade Agostinho Neto, desde que melhor o conheci como diretor de gabinete do ministro de informação que era eu no governo de transição,sempre foi um homem minuciosamente organizado, guardando em arquivo, todos os documentos a que foi tendo acesso e, beneficiando de uma memória prodigiosa relatando as vivências com data, hora e local. Recentemente, enviou-me um texto sob epígrafe O nascimento da Nação. Testemunho pessoal dos dias de Luanda. Certo que eu também os vivi e, como acontece com os livros que escrevo, quando sai um livro meu não o leio, só de vez em quando converso com passagens que me emocionam. Como não vou esquecer o dia em que saí do meu gabinete na frontaria do palácio, de noite e sem guarda-costas, ao entrar no carro, soltaram-se de emboscados nas árvores, um grupo de portugueses que só me deram tempo de trancar o carro, partiram o vidro, os óculos voaram, e começaram a agressão, eu a buzinar, milagrosamente, estava cá fora Fundanga, guarda-costas de Lopo de Nascimento que correu a disparar para o ar. As duas tentativas de atentado que quem melhor do que eu já contou pois numa delas o jovem Pereira Furtado, meu guarda-costas de 17 anos, levou o tiro por mim, pedi ao Henrique Abranches para cuidar do jovem. Mais tarde foi para Cuba e destacou-se na academia militar, vindo a atingir o posto de general. Mas o dia 10 de novembro foi um corre-corre de coração e entrega pela causa da independência. Estávamos a cumprir a profecia de Agostinho Neto inscrita no poema elaborado no cárcere do Aljube, “O içar da Bandeira”. Peço licença ao Fernando para transcrever este pedaço do seu texto: (…)O “trabalho de casa” foi feito, literalmente, na casa do Manuel Rui, onde, pela noite adentro, apareciam juristas como a Dra Antonieta Coelho e o Dr. Aníbal Espírito Santo, dirigentes como Lúcio Lara, Lopo do Nascimento, Saydi Mingas e Henrique Santos Onambwe. Bem próximo, na sua casa, Dilowla esboçava o que viria a ser a parte económica da Constituição, concertando-se com Saydi Mingas. Nos últimos dias, também deu o seu sábio contributo o Dr. Óscar Monteiro, jurista moçambicano que, seu amigo pessoal e colega de Coimbra, estava alojado na residência do Manuel Rui. Por outro lado, a Lei da Nacionalidade que, no essencial recolhia o acordado em Alvor(…). E mais adiante, (…) Com a incerteza da realidade que mudava a cada instante, obrigando a quase uma “navegação à vista”, pelo lado do MPLA foi-se trabalhando na preparação daqueles instrumentos fundamentais, a saber, a Constituição e a Lei da Nacionalidade, o texto solene da Proclamação da Independência e os símbolos do novo Estado. Essa tarefa foi obra de um núcleo muito reduzido de dirigentes e militantes e desenrolou-se, principalmente, num marco espacial centrado na Cidade Alta, no Palácio do Governo, onde funcionavam o Ministério da Informação e o Ministério da Justiça, e o adjacente Bairro do Saneamento, por detrás do Palácio, onde residiam os Ministros, nomeadamente Manuel Rui Monteiro, Carlos Rocha Dilowla, Saydi Mingas e Augusto Lopes Teixeira (alguns Ministros da Unita e da Fnla já tinham abandonado as suas casas vizinhas e Luanda). Nessa manhã de 10 de Novembro, o Alto-Comissário português fazia uma declaração em que afirmava que entrega os destinos de Angola ao seu povo… os fuzileiros que guardavam o palácio abandonaram os postos com as portas às escancaras. Na ilha, arrearam a bandeira da base da marinha e um jovem tenente nosso amigo que me passava informações sobre a postura da África do Sul karkamana, entregou-nos a bandeira.Após a independência, Portugal não reconheceu o nosso Estado. Os portugueses foram para altomar na expectativa, alguns, de assistirem de longe, à catástrofe de Angola que pagara a guerra colonial e era a joia da coroa de Salazar ou a gata borralheira como afirmara Henrique Galvão. Quando o palácio nem sequer nos foi entregue, pensei naquelas situações da América Latina e África em que vem logo saque desenfreado, muitas vezes de forma violenta e letal. Pois não. Escórcio arranjou uma guarda de faplitas, os empregados dos governadores mantiveram-se nos seus postos. Os tipógrafos da imprensa nacional não saíram para imprimirem as leis que nós havíamos preparado para publicação no dia seguinte, já no Diário da República com o nosso símbolo em substituição do Boletim Oficial. Lá na ilha, quando os portugueses abandonaram a base, pescadores, mulheres e crianças entraram em festa cantando e dançando com o sentido de posse. O palácio estava cheio de talheres de prata. Jarras e copos de cristal. Nenhum de nós ficou com um garfo, uma faca, um copo. Nem com um azulejo das paredes. A independência foi proclamada, e o Içar da Bandeira foi feito por uma criança e um herói do quatro de Fevereiro. Tínhamos ido à rádio gravar com as vozes de Rui Mingas, Lamartine, Catila Mingas e eu (!). Depois Carlos Lamartine havia ensaiado o coro juvenil também nesse dia 10. Eu estava na tribuna e nunca o meu coração quis sair do peito como naquele momento. Não estava previsto mas Agostinho Neto era assim e falou para irmos todos para o palácio. E lá caminhámos com o povo sem desacatos que era uma multidão exemplar e não havia polícia… Entrámos no palácio e fomos aplaudidos pelos empregados fardados de branco a rigor, alguém, terá corrido a avisá-los “vem aí o camarada Neto,“então estava ali um banquete a preceito. O povo continuava lá fora gritando, cantando e dançando. Neto chamou-me à parte e mandou-me fazer um discurso à varanda, de que Fernando de Oliveira regista este extrato do improviso: “Está definitivamente enterrado o tempo em que, das varandas dos palácios coloniais, erguidos com o trabalho forçado do nosso Povo, os sorrisos de ouro e os gestos de abastança procuravam disfarçar a fome, a usurpação e o genocídio. A máscara do colonialismo acabou”. Não estou a escrever esta crónica “com os olhos secos” mas húmidos, recordando a melodia de Vinícius, poeta e compositor brasileiro que passa no filme “Orfeu Negro”: Tristeza não tem fim, felicidade sim. Mas com a sensação que o nosso país tem muitas flores do mato, dizem que as lágrimas limpam mas uma só caída numa pétala de flor deixa de ser tristeza para ser amor.
Está definitivamente enterrado o tempo em que, das varandas dos palácios coloniais, erguidos com o trabalho forçado do nosso Povo, os sorrisos de ouro e os gestos de abastança procuravam disfarçar a fome, a usurpação e o genocídio. A máscara do colonialismo acabou