Escola de motocross é um sonho de Vuty
“É necessário ensinarmos os elementos básicos da condução defensiva, os cuidados a ter na estrada”
“No dia-a-dia sinto receio de permitir que eles façam uso de motorizadas. A nossa realidade requer de mim muitos cuidados”
No primeiro contacto percebemos logo que Vuty detesta dar entrevistas, e que não gosta que lhe escrutinem a vida pessoal. Ele é das maiores referências do motociclismo de Angola. Tudo o que conquistou foi por mérito próprio. Hélder Coelho “Vuty”, 44 anos, é um homem do motociclismo, com uma cultura de trabalho apertada. É isto que o move. Durante a tarde em que decorreu a nossa conversa manteve-se sempre ligado, nunca parou de trabalhar. Dois telemóveis no silêncio, pousados por cima da mesa, vão-lhe dando conta do que se está a passar. Na sala de reuniões da empresa transportadora de cargas, transitária e operadora de terminais portuários e aeroportuários – Unicargas - as marcas de óleo, fruto do trabalho que faz, são visíveis nas mãos de Vuty. No que toca a motorizadas, Vuty está como peixe na água. Dentro e fora da pista, mantém o foco de um atleta que sabe o seu valor. O caderno Fim-de-Semana conversou com ele sobre a sua carreira, a sua chegada ao motociclismo e os seus sonhos
Fale-nos um pouco de si, sobre a sua história. Quem é o Hélder Coelho “Vuty” dentro e fora das pistas?
Estou registado com o nome completo de Hélder Walviuty Dias Rodrigues Coelho. O Vuty descende do nome Walviuty, que segundo a minha madrinha é um nome de origem russa, mas que não sei o seu significado. Na verdade, o meu nome de registo levaria Walviuty Quevela, mas na hora do registo recusaram. Sou natural de Luanda, mais concretamente do Bairro das Ingombotas. Curiosamente, nasci a 500 metros da maior maternidade do país, Lucrécia Paim, mas infelizmente não nasci numa maternidade. Nasci em casa, por mais estranho que pareça. Nasci no dia 19 de Setembro de 1976, quer dizer que no próximo sábado (ontem) celebrarei 44 anos de idade.
Diz-se que aos 9 anos de idade Vuty já era um admirador de motos. O que é que uma criança com esta idade sente, quando isso acontece?
Curiosamente, poucas pessoas sabem que antes das motorizadas fui admirador de camiões. Desde pequeno que adoro camiões. Comecei a conduzir o camião N10 da marca Volvo aos 9 anos de idade, do meu pai. Ele era vendedor de areia. Nos tempos livres dedicamo-nos a trabalhos agrícolas na quinta familiar, localizada na zona da Funda - Cacuaco. Recordo que por ser pequeno, na altura, para tocar nos pedais da embraiagem e no travão socorria-me de uma lata de leite Nido. Todas as vezes que a Lagoa da Kilunda inundasse ou ameaçasse estragar a plantação, tínhamos que nos juntar e ajudar o pai a estancar a fúria da água com terra, para impedir que a água transbordasse até ao cultivo. Foi nestas circunstâncias que fui tendo contacto directo com carros pesados como camiões e tractores. Recordo-me de passar o dia em cima do tractor, a manusear terra para frente e para trás. Por isso, a minha grande paixão no início eram camiões e tractores.
Quando foi que teve contacto pela primeira vez com uma motorizada?
Curiosamente entrei para o mundo das motorizadas por conta de um vizinho, o Vadinho Queimado. Foi por conta deste e do João Serrador que abracei o mundo das motorizadas. Sempre tive uma especial admiração pelo João Serrador, por ele ser o único, na época, que conseguia parar no semáforo com a roda dianteira no ar, sem tocar os pés no chão. Infelizmente as motorizadas que eles conduziam já eram caras. Como não tinha recursos financeiros decidi alugar motos. Várias vezes fui ao mercado do Roque Santeiro, onde para andar de moto durante 15 a 20 minutos tinha de pagar. Falo de motos de marca Zundap e outras que já não existem. O Vadinho Queimado viu em mim talento e decidiu apostar. Levou-me a fazer teste no circuito localizado na conhecida Rotunda do Gamek, no local onde está hoje o Nosso Centro e o edifício da seguradora AAA. Infelizmente, não fui aceite nos testes, por haver na época uma selecção rigorosa. Inconformado com a realidade, o Vadinho Queimado pediu emprestada uma motorizada de um amigo. Era uma DT. Competi num teste ao lado de corredores profissionais. Recordo-me de ter tido uma queda aparatosa e um dos melhores tempos, para surpresa de todos.
O que é que mais o motivou nesta modalidade?
Olha, foi o facto de um dos senhores do motociclismo em Angola ter confiado em mim. Falo do senhor Roberto Talaia, que me cedeu uma motorizada da marca Kawasaki. Havia muitas equipas na altura e eu não estava integrado em nenhuma delas. Comecei a competir com uma motorizada de 50 centímetros cúbicos e depois passei para outra categoria. Fomos a Benguela, numa competição que juntava os melhores nomes do motociclismo de Angola. Falo de Bianchi, Vítor Santos (Vitó), Talaia, Mancha, Adão Costa, entre outros nomes. Curiosamente, corri e consegui o quinto lugar no meio daqueles corredores poderosos. Foi um marco na minha jovem carreira. Nunca mais parei.
É dos primeiros angolanos a chegar à elite do motociclismo. Como se consegue alcançar este patamar? Quantos troféus ganhou?
Na verdade perdi a conta de quantos títulos tenho na minha galeria. Na altura em que comecei a correr, não havia campeonatos e as competições eram organizadas por instituições do Estado ou privadas. O importante nessa época era vencer o troféu e mais nada. Os prémios eram aliciantes. Falo de prémios como fogão, geleiras e televisores a cores. Como os meus pais não me apoiavam, por ser uma modalidade de risco e por não agregar valor, o meu desafio era levar para casa um prémio, para mostrar aos meus pais que o desporto davame algum benefício.
Quantos anos de motociclismo acumulou?
É um caminho longo. Foram aproximadamente 28 anos de motociclismo, com competições dentro e fora do país. Lembro-me que a minha primeira corrida fora de Angola realizou-se em Portugal, numa equipa da Endur, onde tive como colegas Miguel Falajota e Bianque Prata, que actualmente está ligado ao Rally Paris-Dakar. Foi uma experiência muito boa.
Numa entrevista recente, você disse que já não competiria. que deixaria de correr profissionalmente...
É verdade. Como profissional já me afastei por causa da idade e das responsabilidades acrescidas que tenho vindo a granjear nos últimos anos. Estou formado em Electricidade pelo Instituto Médio Industrial de Luanda (IMIL) e estou a tentar meter em prática a minha formação académica. Também fiz o segundo ciclo de Mecânica Geral pelo IMIL. Estas valências fizeram-me pensar em apostar nas duas áreas.
Mesmo assim, não abdiquei, na totalidade, do motociclismo. Faço rally e outras modalidades por gosto, para incentivar os mais jovens.
Está vinculado actualmente à Unicargas. Qual é a sua tarefa nesta empresa vocacionada ao transporte de cargas?
Estou lá há dois anos como efectivo. Entrei como técnico especialista de manutenção do Departamento de Engenharia e Manutenção. Actualmente sou o responsável pelo Departamento de Mecânica-Geral. Tem sido um desafio tal que vocês não têm noção da dimensão do pessoal ligado à minha área. Falo de um universo de 115 técnicos, só nesta área, desde mecânicos, serralheiros, pintores, bate-chapas, eletricistas-auto... A nossa responsabilidade é manter o funcionamento dos meios. Muitos deles já são antigos e manter a frota operacional em todo o país é o nosso desafio. Outrossim, é reactivar os activos que a Unicargas tem em delegações como Cabinda, Luau (Moxico) e Benguela.
Hélder Coelho “Vuty” também está ligado à formação de polícias. Falo, concretamente, no domínio da Brigada Motorizada ....
Sim, tive a felicidade de ser um dos pilotos chamados para dar aulas na área do motociclismo. Na verdade, isso começou em 2005-2006. Tudo começou a convite do ex-comandante-geral Ekuikui. Como conhecia bem o nosso trabalho e porque, por várias vezes, fomos chamados a dar suporte em termos de conhecimento, fui convidado a participar da formação de policiais, visando dar resposta ao combate à criminalidade. Abracei esta causa. Inicialmente abracei o desafio sozinho, mas depois tive que convidar outros colegas da área. Comecei por participar na formação de 200 efectivos, mas depois subiu para 500, então houve necessidade de partilhar a experiência com outros colegas. Falo do Bruno Ouro, Miguel Ângelo e Djamir Madaleno. Trabalhava para o grupo Valentim Amões, na época em que fui seleccionado para fazer parte da reintegração de ex-militares que estavam localizados nas regiões de Mavinga, Menongue e Luanda. Fui o coordenador desta missão e a cumpri com zelo. Tenho continuado e, muito recentemente, terminámos uma formação de 120 efectivos, que devem sair nos próximos dias.
Qual é o segredo para ser um bom piloto de motocross e de automobilismo?
Não aderir ao álcool e não perder noites desnecessariamente. Elimine discotecas, festas e convívios nocturnos. Dedicar-se aos estudos e fazer pesquisas frequentes sobre o mundo do motocross e do automobilismo. Outro dos segredos é ser rigoroso na dieta alimentar. Temos que comer muita fruta e legumes. Não consumir drogas.
Nota-se uma letargia do motocross e do automobilismo em Angola...
É verdade. É um trabalho difícil, mas não é impossível de ser feito. É necessário que haja pessoas que acreditem neste desporto, como o Fernando Varela acreditou. Foi ele que depois de 1975 conseguiu trazer de volta o motocross a Angola. Recordo que quando tínhamos competição com a participação de pilotos estrangeiros, as competições da Federação Angolana de Futebol não registavam público nenhum. Lembro-me que houve um jogo Petro de Luanda-1º de Agosto, na Cidadela, que não teve público. Tudo porque havia uma corrida internacional onde o Vuty e o Georginho teriam que defender o título. Teve de haver consenso para a realização da corrida. Com o surgimento da Federação de Desportos Motorizados julgo que as condições estão criadas para o impulso à modalidade.
Tem quatro filhos... Nenhum deles ainda demonstrou o bichinho por motorizadas?
São os mais novos que mostram essa apetência. Na verdade, não tenho sido um grande incentivador, por ter medo. Preocupo-me muito com a formação de cada um deles, para que possam estar preparados a enfrentar os desafios da vida. No dia-adia sinto receio de permitir que eles façam uso de motorizadas. A nossa realidade requer de mim muitos cuidados. Até hoje desloco-me de motorizada para o serviço e para casa. Foi sempre um desafio para mim pegar na motorizada e andar pelas ruas de Luanda.
Quais são os seus planos para o futuro?
Um dos meus sonhos, que não quero deixar morrer, é a abertura de uma instituição de ensino que possa ajudar a juventude na condução de uma motorizada. Algumas vozes rejeitaram-me e outras até desacreditaram o projecto. Mais de 90 por cento dos motociclistas do país não têm licença para o exercício da actividade de moto-táxi, muito menos estão habilitados a conduzir motorizadas. É uma grande preocupação para mim, enquanto condutor de moto profissional. A Organização Mundial da Saúde estima que ocorrem entre 3 a 4 óbitos por acidente de motorizada. Foi aí que decidi fazer alguma coisa. Já tenho a empresa criada e chamase Vuty Motors. Não saiu do papel por falta de financiamento. Em Angola não temos uma instituição vocacionada à formação de motociclistas. É necessário ensinarmos os elementos básicos da condução defensiva, os cuidados a ter na estrada.
O que impede a materialização deste projecto?
Falta de espaço. Falo de instalações apropriadas para aulas teóricas e práticas. Já tenho contactos avançados com a Escola de Condução Académica, para que o projecto seja materializado. Foi acordado que eles ficariam com a parte teórica e a mim competiria as aulas práticas. Outra das questões é a localização da mesma. Estamos a pensar em atingir todos os municípios de Luanda e os menos desfavorecidos. Seriam ministradas aulas intensivas durante 15 a 30 dias. Os preços seriam módicos, visando atender o maior número de clientes. A escola teria também aulas de desportos radicais e tudo mais. A esperança é a última a morrer.
Pouco disse sobre os seus pais e irmãos...
O meu pai é uma referência na zona da Funda, em Cacuaco. Chama-se Fernando da Conceição Rodrigues Coelho, mais conhecido por kota Coelho da Funda. Não há quem não o conheça. Na zona do Retiro da Letra todos conhecem o meu pai. A minha mãe é a dona Maria de Jesus Afonso Dias Rodrigues Coelho, técnica de laboratório de análises clínicas. Trabalhou durante décadas nos hospitais Josina Machel e Américo Boavida. São pessoas humildes, camponesas e me orgulho bastante deles. Sou o terceiro filho no seio de quatro irmãos. O primogénito é o Carlos, engenheiro mecânico. Segue uma menina formada em Relações Internacionais e a caçula que é engenheira de petróleos. Repare que sou o único que não tem formação superior.
“Foi sempre um desafio para mim pegar na motorizada e andar pelas ruas de Luanda”
“Comecei a conduzir o camião N10 da marca Volvo aos 9 anos de idade, do meu pai. Ele era vendedor de areia”