Jornal de Angola

Estrela cintilante num quintal do Cassenda

Olhei para o astro como se estivesse a ver um homem que saiu dos recortes de jornal. Diniz. Homem simples, de trato fácil e de poucas palavras. Trocamos algumas falas. A minha admiração não me permitiu o habitual chá de boca

- Pombal Maria

Há cerca de meia década abandonei o bairro que me viu crescer, o Neves Bendinha. No Cassenda, encontrei a sombra de outro tecto junto ao Aeroposto Internacio­nal, com vista ao mar, mais próximo a lua, no último andar de um “arranha-céus“dos anos setenta, no tempo de outra senhora.

Com vizinhos mais ou menos breves, inquilinos de curta duração, uns com nariz empinado e outros até muito bem educados, fui-me adaptando aos olhares ambíguos da adulta juventude ociosa. Estrangeir­o autóctone, uns confundemm­e com maliano e outros com senegalês. Mas eu, de pedra e cal, sempre como os Nhaneca-Humbi, Bangalas, Hereros, Mucubais, Khoi-San e outros povos da terra no centro dos meus batimentos cardíacos, ainda ao ralenti.

Nesta mudança, o que mais me marcou foi o meu encontro com um astro do futebol angolano, também residente no Cassenda. Uma velha lenda do futebol. Não foi necessário olhar para o céu. Certo dia, há quatro ou cincos anos, ainda pouco ambientado com o eco madrugador dos automóveis, da música ensurdeced­ora, dos bêbados e cães vadios, precisei, à mesa, do alimento mais sagrado do mundo, feito de farinha de trigo, fermento, sal e água. Tornou-se necessário descobrir os pontos de venda.

Como peregrino fui atravessan­do largos, ruas, à procura do pão. Passei pelo famoso beco do Xixi, uma das saídas da Rua 3 para a

Rua 8. Aportei na pastelaria Belinha, adaptada no quintal de uma velha vivenda do tempo colonial. O sol estava na linha do horizonte. Os postos de iluminação pública apagados, mas acesos no meu imaginário. Muito gentil, um homem da idade de Cristo abriu a porta. Acompanhou­me até ao quintal oposto ao da entrada. No espaço bem organizado, com uma luz tênue, estava um homem sentado de costas para mim, camisa alva e uma banheira de pão entre as pernas abertas como uma parturient­e no Augusto Ngangula. Em Angola, as grandes estrelas encontramo­s na terra e não no céu. Uma cordial saudação nos aproximou. O rosto do homem sentado era-me familiar, já o tinha visto algures. Comprei o pão. Coloquei no saco. Na porta de saída para a rua o meu coração palpitou, senti ter visto uma estrela naquele quintal. Fixei o olhar no rosto do senhor que me acompanhav­a à porta. Tímido,

já me estava a mostrar os olhos da rua. Pergunteil­he se o homem que me atendeu era, de facto, o Joaquim António Diniz. Para meu espanto, ele rapidament­e concordou, abanando a cabeça.

“É ele mesmo, o senhor Diniz“, disse. Até hoje ainda sinto o eco daquela resposta. Meu Deus, senti que o camarada não conhecia bem a dimensão da estrela. Uma grande estrela do futebol angolano naquele modesto quintal de betão armado.

Sei que não havia caído do céu naquele momento. Fiquei boquiabert­o. Era justamente o homem que me fez correr às bilheteira­s, me fez gritar loucamente no estádio da Cidadela, era a grande lenda do futebol angolano. Eu estava diante do meu ídolo do futebol. Esqueci o pão.

Para os meus botões, murmurei como as águas da lagoa em pleno cacimbo: “Ele foi o melhor jogador da minicopa de 1972, uma lenda do futebol mundial”… Meus pulmões encheram-se de orgulho. Voltei a entrar na vivenda, o homem olhou para mim boquiabert­o. Ofereci um forte abraço ao grande Joaquim Diniz, ou simplesmen­te o “Brinca n’Areia”. Doces lágrimas secas saíram dos meus olhos. Encontrei um dos grandes orgulhos de ser angolano. Dei dois passos à rectaguard­a. Desenfaste­i. Olhei para o astro como se estivesse a ver um homem que saiu dos recortes de jornal. Diniz. Homem simples, de trato fácil e de poucas palavras. Trocamos algumas falas. A minha admiração não me permitiu o habitual chá de boca.

“Na porta de saída para a rua o meu coração palpitou, senti ter visto uma estrela naquele quintal. Fixei o olhar no rosto do senhor que me acompanhav­a à porta. Tímido, já me estava a mostrar os olhos da rua. Perguntei-lhe se o homem que me atendeu era, de facto, o Joaquim António Diniz

“Nesta mudança, o que mais me marcou foi o meu encontro com um astro do futebol angolano, também residente no Cassenda”

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