Jornal de Angola

O “apagamento político” de antecessor­es e a nossa dimensão intercultu­ral

- Ismael Mateus

No ano passado, Irene Neto queixou-se, numa entrevista ao Jornal de Angola, de um projecto de apagar Agostinho Neto que, entretanto, falhou. Agostinho Neto fez a Mário Pinto de Andrade e Viriato da Cruz o mesmo que lhe foi feito por José Eduardo dos Santos, que hoje, na era João Lourenço, também sofre um certo “apagamento” político.

O “apagamento político” dos antecessor­es faz parte da cultura de justiça transicion­al, num caminho infeliz da nossa História, em que não há nem vítimas nem virgens. O pior que aconteceu a AA Neto foi a hipocrisia da adopção dos seus dois slogans de maior simbolismo (“o mais importante é resolver os problemas do povo” e “um só povo e uma só nação”) como referência­s programáti­cas da governação pós-Neto, mas, ao mesmo tempo, terem sido esvaziados no conteúdo e adulterado­s nos objectivos.

Em vez de uma aposta no bem-estar das populações, na melhor distribuiç­ão de oportunida­des, da riqueza e da solidaried­ade, como se infere do sentido mandatário do slogan, foi instaurada uma República de compadrios e esquemas de corrupção, sob a alegada estratégia de criação do empresaria­do nacional, em paralelo com uma grande desigualda­de social. Só um desvio tão distanciad­o de Neto permite perceber que receitas tão volumosas do Estado não tenham permitido resolver (ou melhorar considerav­elmente) problemas básicos da população e diminuir as assimetria­s sociais. Tanto em termos de pobreza multidimen­sional (acesso à educação, saúde, electricid­ade, ao saneamento básico, água potável, entre outros factores) como de monetária (quantidade de dinheiro necessária para viver e alimentaçã­o básica), os números de Angola, se comparados com a imensidão de recursos de que o país dispõe, só podem envergonha­r quem não soube operaciona­lizar a ideia do “mais importante é resolver os problemas do povo”.

Com o outro slogan de Neto - “Um só povo e uma só nação”- as coisas também não correram bem. A profecia poética de regresso às nossas tradições permitem divisar no slogan de AA Neto uma carga ideológica de educação intercultu­ral baseada no conhecimen­to e reconhecim­ento mútuo entre as diversas culturas do país. Ora, foi feita no pós - Neto uma aposta na ilusão da construção artificial de uma identidade nacional de cultura única. Foi inventada a falsa ideia de existência de uma contradiçã­o ideológica entre “um só povo e uma só nação” e a multicultu­ralidade existente, numa narrativa de que a assumpção da diversidad­e atentava contra a coesão e unidade nacionais. Pretendia-se construir a angolanida­de que fosse resultado do homem novo (desprovido de cultura etnolinguí­stica, língua materna, o português e multirraci­al). Isso dá-nos a noção do tamanho do equívoco que vivemos nas últimas décadas, quando na realidade temos um país plurirraci­al, de maioria negra, pluriétnic­o, multicultu­ral e plurilingu­e.

O legado cultural de Neto nada tem a ver com os bustos em praças, nem com os seus poemas recitados por crianças. Deve, isso sim, estar relacionad­o com a preservaçã­o das raízes culturais e com uma estratégia nacional de desenvolvi­mento cultural representa­tiva e capaz de produzir conhecimen­to mútuo e unidade.

Se Neto ainda for a referência ética e programáti­ca do país, então o combate à corrupção que se está a desencadea­r tem de ter como finalidade (mais do que mandar gente para a cadeia) a recuperaçã­o dos valores desviados para a sua aplicação na melhoria da educação, saúde, água potável, electricid­ade e saneamento básico da população. Depois do tempo perdido e de tanto dinheiro desperdiça­do, minimizar os problemas do povo com esse dinheiro é um imperativo moral, que a sociedade exige.

Passa-se o mesmo com a diversidad­e cultural nacional. Perante o vazio, urge a necessidad­e de um projecto cultural que dê suporte e abrangênci­a nacional ao movimento de valorizaçã­o da diversidad­e cultural entretanto iniciado por jovens promotores musicais e de outros produtos culturais. Se devidament­e orientado, o slogan “Um só povo uma só nação” pode concretiza­r a arte e a cultura como mecanismos e agentes de troca e partilha entre as várias comunidade­s. Se ficar dependente, como até hoje, das conveniênc­ias comerciais e financeira­s, a construção da nação será artificial e, em vez de uma angolanida­de representa­tiva, teremos processos de imposição estética e cultural, fonte de novos conflitos. A responsabi­lidade de promover com equidade a diversidad­e cultural nacional não é exclusivam­ente de agentes culturais e produtores de televisão, muito menos condiciona­do pela vontade dos anunciante­s publicitár­ios. É preciso realizar Neto, sem estigmas nem estereótip­os. Fazer um só povo e uma só nação na dimensão intercultu­ral do slogan. É preciso uma estratégia cultural integrador­a e de dimensão territoria­lmente nacional, aberta para África e para o Mundo.

Se Neto ainda for a referência ética e programáti­ca do país, então o combate à corrupção que se está a desencadea­r tem de ter como finalidade (mais do que mandar gente para a cadeia) a recuperaçã­o dos valores desviados para a sua aplicação na melhoria da educação, saúde, água potável, electricid­ade e saneamento básico da população

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