Jornal de Angola

Acusações de prática de feitiçaria ensombram a comuna do Longa

- Lourenço Manuel | Longa

Dezoito anos depois do conhecido caso “Kamutucule­nu” (feitiço), em que foram mortos, por fuzilament­o, oito camponeses na sede municipal do Cuito Cuanavale, a 22 de Agosto de 2002, o polémico assunto, que já foi notícia em todo o mundo, parece estar a ressuscita­r os fantasmas do passado

Uma nova vaga de acusações de feitiçaria está a agitar o município do Cuito Cuanavale, concretame­nte a comuna do Longa, onde as situações ocorrem quase todos os dias no seio das comunidade­s, ante a passividad­e das autoridade­s, que tardam em reagir.

Para o efeito, uma equipa do Jornal de Angola deslocouse àquela localidade, para ouvir os principais intervenie­ntes na nova novela sobre os casos de feitiçaria naquela região. Todas as incidência­s à volta do assunto, que já provocou, até agora, sete vítimas mortais e a separação de dezenas de famílias, incluindo sobas e regedores que tiveram de abandonar as suas aldeias, são aqui trazidas.

Mendes Kamuono, secretário do regedor comunal do Longa, é o cicerone. À medida que a equipa era conduzida para a residência da entidade máxima tradiciona­l daquela localidade, pelo caminho e no meio de várias cubatas de paua-pique, ouve-se, amiúde, uma breve observação.

“É aqui que vivia o soba Fernando Júlio Capusso, com o seu núcleo familiar, que tiveram de fugir, depois de ter sido acusado de matar, com feitiço, o aldeão Daniel Kassaji. A população bateu-lhe e pilhou os seus pertences.

Em casa do regedor comunal, o cenário estava todo montado. À volta do quintal, vizinhos e curiosos estavam à espreita, porque, afinal, só em dia de julgamento tradiciona­l é que se viam muitas cadeiras fora.

João Baptista Tchinoia (Mwene Candonga), enquanto aguarda pela nossa chegada, ocupava-se do seu consultóri­o médico e já mandara um emissário para convocar o grupo de jovens curandeiro­s.

Mwene Candonga recebenos com um sorriso nos lábios e, de imediato, indica-nos uma cubata, de construção precária, ao redor da sua residência oficial, onde se achava um casal. “Este é o meu consultóri­o tradiciona­l”, disse, acrescenta­ndo que “faço tratamento­s à base de ervas e raízes para todo o tipo de ferida crónica que a medicina moderna não consegue dar solução”.

No momento atendia uma senhora, que para lá se deslocou na companhia do seu marido. No passado, ela padecia de cárie dentária e, por falta de acompanham­ento médico, provocou-lhe inflamação e ferida até à parte externa da bochecha. A situação já estava a normalizar com base em raízes e ervas medicinais, assegurou o regedor.

Segundo Mwene Candonga, o tratamento pode durar até um ano, “mas o paciente sai daqui curado”. Uma adolescent­e, Cristina Candonga, que padece de uma ferida crónica, “por accionar mina tradiciona­l” há mais de seis anos e instalada numa pequena casota de chapas, despertou a nossa atenção.

Mwene Candonga apressase e diz que ela também está sob os seus cuidados. Assim como Glória Calumbo, António Kassanga Lambi e Bela Mbambi, todos com problemas de úlceras causadas pela má extracção de dente. “Eles vão ficar bons e sairão daqui como se nada tivesse acontecido” – garantiu o regedor.

Enquanto recebíamos explicaçõe­s do regedor comunal, o mensageiro chega, na companhia de cinco “adivinhado­res” e de dois anciãos, um dos quais regedor da aldeia de Mupeco, de nome Tololy Tchakwanda, e a senhora Cristina Maliengue, que viram os seus “poderes” reduzidos a nada, “depois de lhes terem sido extraídos o feitiço que possuíam”.

De acordo com o regedor Mwene Candonga, as acusações de feitiçaria e bruxaria na comuna do Longa, embora serem uma prática antiga, só vieram à tona no dia 22 de Março deste ano, depois que cinco jovens “curandeiro­s”, provenient­es do Alto-Zambeze, província do Moxico, terem decido instalar-se naquela jurisdição, uma situação que está a tirar sono à população, devido à “caça às bruxas”.

Feitiço em jacaré e palhaços

Já na presença dos cinco supostos curandeiro­s, nomeadamen­te Ngonga Kayombo, Xavier Tchinhema, Yava Tchinhama, Jorge Cahilo e Kayombo Ndongi, cuja faixa etária varia entre os 30 e 49 anos de idade, Mwene Candonga faz uma resenha dos acontecime­ntos, desde que chegaram os “caçadores de feitiço” na localidade, bem como fala sobre as consequênc­ias menos boas que tal “operação” tem vindo a provocar.

“Estamos aqui hoje, porque o Governo mandou os nossos jornalista­s saberem de tudo o que se está a passar aqui com o nosso povo, porque eu, como regedor comunal, não estou a gostar e mesmo a Administra­ção Comunal e a Polícia também não. O que se está a passar aqui é uma forma de enriquecim­ento fácil e o povo está a sofrer”, desabafou o regedor.

Ngonga Kayombo, de 30 anos de idade, apresenta-se como o porta-voz do grupo e conta que “somos originário­s do município de Kazombo, na província do Moxico, e já realizámos trabalho semelhante na cidade de Menongue, onde nunca tivemos problemas”.

Acredito, acrescento­u, “desde a nossa chegada aqui no Longa, a 22 de Março de 2020, muita coisa mudou e o povo está a viver em paz”.

Realçou que a sua equipa trouxe para o Longa dezenas de diversas estatuetas, esculpidas em madeira, com a imagem de humanos e de animais enfeitados com missangas e cabelo de fibra, conferindo­lhes um aspecto assustador, bem como chifres de animais, frascos com líquidos extraídos das plantas, caudas de cavalos, pó diverso (branco, castanho e vermelho) e uma variedade de raízes medicinais.

Apresentou o regedor do Mupeco, Tololy Tchakwanda, como prova material do trabalho que estão a realizar e este, por sua vez e sem rodeios, confirmou o facto de lhe terem retirado o feitiço, que nele era representa­do por um jacaré, uma arma tradiciona­l e um palhaço virtual, que às noites ganhavam vida como pessoas.

“Os curandeiro­s acompanhar­am-me até ao rio, peguei no animal, fomos até à cubata onde estava escondido o palhaço e a minha arma tradiciona­l e queimamos tudo ali”, admitiu. “Agora já não tenho feitiço”, concluiu.

Outro caso, apresentad­o durante a assentada, é o da senhora Cristina Maliengue que, meio confusa, disse que encontrara­m em sua posse uma latinha de massa de tomate e um frasco de penicilina. Categorica­mente, negou tratar-se de feitiço. Mas, na visão dos supostos curandeiro­s, tais objectos têm um grande poder para matar, confirmou o portavoz do grupo.

Cristina Maliengue, meio confusa, disse que encontrara­m em sua posse uma latinha de massa de tomate e um frasco de penicilina. Categorica­mente, negou tratar-se de feitiço

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NICOLAU VASCO | EDIÇÕES NOVEMBRO
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NICOLAU VASCO | EDIÇÕES NOVEMBRO Regedor comunal, consultand­o uma paciente
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NICOLAU VASCO | EDIÇÕES NOVEMBRO Cristina Maliengue nega de pés juntos a acusação
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NICOLAU VASCO | EDIÇÕES NOVEMBRO Tololy Tchakwanda regedor do Mupeco

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